AGUA Y TERRITORIO, NÚM. 15, pp. 73-78, ENERO-JUNIO 2020, UNIVERSIDAD DE JAÉN, JAÉN, ESPAÑA ISSN 2340-8472 ISSNe 2340-7743 DOI 10.17561/at.15.4926

water and landscape
AGUA y TERRITORIO

Conflitos Socioambientais em torno dos recursos hídricos na cidade de Belém, no Estado do Pará (Brasil)

Socio-environmental conflicts around water resources in the city of Belém, Pará State (Brazil)

Shirley Capela Tozi

Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Pará

Belém, Pará, Brasil

shirleytozi@usp.br

https://orcid.org/0000-0002-2318-5760

Resumo — A Cidade de Belém do Pará, também conhecida como cidade das águas, localizada ao norte do Brasil, é a porta de entrada da Bacia Amazônica, e é entrecortada por 13 bacias hidrográficas e cercada por rios e bahias. No entanto, sua identidade ribeirinha tem sido negada, havendo uma relação conflituosa entre a população e as características naturais da cidade. Ora os conflitos estão relacionados às características naturais ou modificadas dos rios e suas bacias, conflitando com o sítio urbano da cidade, ora o conflito se dá pela falta de água ou escassez relativa, advinda principalmente pela oferta de serviço de abastecimento público. Desta forma, existe um conflito de interesses no uso e acesso a água na cidade. Assim, pretendemos discutir o conflito histórico com as águas na Cidade das Águas.

Palavras chave: Água, Conflito, Amazônia, Belém

Resumen — La ciudad de Belém do Pará, también conocida como la ciudad de las aguas, situada en el norte del Brasil, es la puerta de entrada a la cuenca del Amazonas, y está atravesada por 13 cuencas hidrográficas y rodeada de ríos y cuencas. Sin embargo, se ha negado su identidad ribereña, con una relación conflictiva entre la población y las características naturales de la ciudad. Los conflictos están relacionados con las características naturales o modificadas de los ríos y sus cuencas, en conflicto con el sitio urbano de la ciudad, y el conflicto se debe a la falta de agua o a la relativa escasez, derivada principalmente del suministro de servicios públicos. Por lo tanto, hay un conflicto de intereses en el uso y acceso al agua en la ciudad. Así, pretendemos discutir el conflicto histórico con las aguas de la Ciudad del Agua.

Palabras clave: Agua, Conflicto, Amazonia, Belém

Abstract — The City of Belém in Pará, also known as the city of waters, located in the north of Brazil, is the gateway to the Amazon Basin, and is intersected by 13 hydrographic basins and surrounded by rivers and bays. However, its riverside identity has been denied, with a conflicting relationship between the population and the city's natural characteristics. Sometimes the conflicts are related to the natural or modified characteristics of the rivers and their basins, conflicting with the urban site of the city, sometimes the conflict is due to the lack of water or relative scarcity, mainly arising from the provision of public supply service. Thus, there is a conflict of interest in the use and access to water in the city. Thus, we intend to discuss the historical conflict with the waters in the City of Waters.

Keywords: Water, Conflit, Amazon, Belém

Información Artículo:Recibido: 9 agosto 2019Revisado: 25 abril 2020Aceptado: 28 abril 2020

INTRODUÇÃO

É indubitavelmente difícil imaginar que na Amazônia existem casos de conflitos por água, sobre as águas, e pelas águas e contra as águas. Belém, em meio à floresta amazônica, vive este paradoxo conflito. A cidade é entrecortada por igarapés, circundada por rios e ainda assim apresenta vários episódios de conflitos.

As águas da cidade apresentam problemáticas ambientais para a população que embora convivesse com elas, em várias situações ela foi vista como inapropriada. As relações se mesclam entre ter o controle sejam das águas superficiais, sejam das atividades desenvolvidas nela, sejam da distribuição de água.

CONFLITOS AMBIENTAIS E DEMOCRACIA

A “problemática ambiental e as desigualdades sociais situa as populações em situações de risco e vulnerabilidade”1. A forma de uso e ocupação do território estão relacionadas as práticas constitutivas das populações. Ou seja, a relação entre sociedade/natureza/cultura produzindo o território e o lugar, dando origem as desigualdades sociais. Em virtude das desigualdades sociais a população mais pobre habita espaços cujas problemáticas ambientais estão/são afloradas.

O Conflito ambiental pode ser entendido como:

“[...] aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis —transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos— decorrentes do exercício das práticas de outros grupos”2.

Desta forma, o conflito ambiental se dá através da expropriação ou de impactos ambientais que impedem a população de se reproduzir socialmente, culturalmente e ambientalmente.

Os conflitos também podem ser gerados a partir de práticas de gestão do território que excluem a população do processo decisório, ferindo a democracia. O conflito ocorre em função da maneira autoritária em que os governantes tomam decisões.

No entanto, a experiência do conflito é um processo de aprendizagem individual e coletiva e as relações entre os sujeitos deve levar a democracia, no qual a democracia é alcançada pela participação dos cidadãos, tal como coloca:

“los conflictos ambientales se caracterizan por una puesta en discusión de la democracia representativa, considerada como insuficiente por sí misma, mientras emergen las peticiones de una democracia diferente basada en la participación de los ciudadanos”3.

O gestor deve ser o promotor da qualidade de vida da população e não o gerador de conflitos. Posto que o território seja produto de uma construção coletiva, a partir da organização social, em que os sujeitos do poder são instituídos apropriando-se material e simbolicamente. E a resistência, é um exercício que se converte em formas de pensar e fazer política.

Os movimentos sociais convertem-se em formas alternativas de democracia. Os movimentos sociais são uma necessidade para alcançar a democracia. Pois há produção de desigualdades socioambientais, no qual o consumo excessivo dos ricos e da classe média priva os pobres de uma divisão equilibrada do uso e acesso aos recursos ambientais. E os movimentos sociais representam formas de participação da população mais pobre, na tomada de decisões.

Há, portanto, a necessidade de repensar a natureza e as relações sociais, visto que, como Castree e Braun afirmaram:

“A questão crucial é, portanto, não a questão de policiar fronteiras entre 'natureza' e 'cultura' mas sim, de assumir a responsabilidade por como se dá nossas inevitáveis intervenções naturais —dessa forma, com quais consequências e ao benefício de quem”4

A diversidade de relações socioambientais, voltados ao mercado capitalista, são os grandes responsáveis pela situação atual da natureza, do ambiente. Diante disto, a natureza e o ambiente são metabolizados, ou seja, a natureza é transformada em mercadoria, inerte ao uso, propriedade e troca, proporcionado pelo trabalho humano.

A metabolização da natureza e o poder advindo dessa transformação será um fator de crise e, portanto, de conflitos para a sociedade. As relações desiguais de poder cria o ambiente urbano. Pois “os detentores do poder são capazes de controlar quem tem acesso a recursos (principalmente através do nexo dinheiro/propriedade), a qualidade desses recursos, e quem pode decidir como esses recursos são usados”5.

As desigualdades ambiental e social estão relacionadas diretamente a urbanização e a metabolização da natureza. E para compreender as desigualdades ambientais, não é possível dissociar de questões políticas, econômicas e sociais.

A urbanização é um processo gerador de conflitos visto que sua organização não leva em consideração a democracia, ou seja, ações que deveriam beneficiar e ser decidido por toda a população, e não apenas por alguns grupos sociais. A urbanização não é democrática, possibilitando reais potencialidades geradoras de conflitos. É neste contexto que é importante buscar conciliações entre as esferas de poder, abrindo-se ao diálogo.

“En este sentido, es necessário buscar pactos entre usuarios de los recursos naturales, especialmente del agua, con la indispensable implementación de un sistema de regulación de los usos múltiples de los recursos hídricos sustentado en bases legales, que estimule el diálogo entre los sectores usuarios, el gobierno y la sociedad civil”6.

O conflito pode surgir em função do uso do poder para obter acesso, seguro, aos recursos e serviços ambientais7. Percebe-se que a natureza está “[...] no interior do campo dos conflitos sociais”8.

A ideia de conflito ambiental está associada à ideia de escassez de recursos naturais associada a perspectiva quantitativa do recurso. Todavia, o que existe são distintos projetos de apropriação da natureza, conflitando com a diversidade cultural e significação da mesma, associando as perspectivas qualitativas e não apenas quantitativas de recursos advindos da natureza.

BELÉM CIDADE DAS ÁGUAS

A cidade de Belém situa-se ao norte do Brasil, sendo a porta de entrada para a Amazônia. Está sob a influência do rio e do oceano, no vértice entre as margens do Rio Guamá e da baia de Guajará, cujas características geográficas nortearam o crescimento e expansão da cidade. Entretanto havia dois acidentes geográficos, o igapó e o igarapé do Piri, que impediam a contiguidade do crescimento, surgindo dois bairros: Campina e Cidade (atualmente Cidade Velha).

“Da época da fundação da cidade (1616) até os meados do século XVIII a cidade cresceu à beira do rio (Fase Ribeirinha), passando a partir daí a se interiorizar (Fase de Penetração) e após a segunda metade do século XIX a sofrer a influência maior do continente, diminuindo as influências fluviais (Fase de Continentalização)”9.

A cidade foi se expandindo e encontrando os acidentes hídricos. A população foi contornando os acidentes e habitando as cotas mais altas da cidade, deixando os terrenos alagados ou alagáveis de cotas mais baixas, desocupados.

Belém, enquanto cidade amazônica possui treze bacias, lagos que abastecem a cidade, e seu sítio se expande para áreas insulares.

Com o crescimento populacional ocorrido após os anos 1960 a ocupação ocorreu da seguinte maneira: ocupação das partes centrais dos quarteirões, construindo vilas e passagens nas cotas altas da cidade, cuja consequência foi o desaparecimento de áreas verdes da cidade; as populações mais pobres foram habitar as áreas de baixadas que são sempre alagadas ou alagadiças, cujas casas foram construídas sobre estivas e em forma de palafitas; expansão da cidade para além da primeira légua patrimonial da cidade (na qual foi criado um cinturão institucional), construindo projetos habitacionais e alocando indústrias.

As áreas de baixadas de Belém ocupam 40% da área urbana da cidade. Em 1973 a densidade populacional nessas áreas era de 141 hab/ha. A densidade populacional adicionada as situações de insalubridade das moradias, posto que essas áreas não possuíam saneamento, pressionaram os governantes a tomarem providências para o saneamento das baixadas. Iniciando o programa de recuperação das baixadas, e outros projetos de macrodrenagem dos igarapés de Belém.

CONFLITOS EM BELÉM

Belém possui sítio urbano entrecortado por igarapés e lagos, características que proporcionaram entraves à urbanização. Mas nem sempre foi assim, em 1753 o capitão Gaspar João Geraldo Gronsfesd idealizou que Belém poderia ser navegável, tal como Veneza, interligando os caminhos da cidade através dos igarapés. O igarapé do Pirí teria sua bacia preparada para encontrar-se com outra bacia, a do reduto, integrando todos os igarapés, formando uma rede fluvial navegável.

Porém, a corte portuguesa vetou o projeto, e desde então os igarapés tornaram-se esgotos a céu aberto ou foram aterrados.

Os rios e igarapés de Belém já foram valorados, pois o fluxo populacional e a circulação de mercadorias eram feitos através destas vias. O lazer e as atividades domésticas também estavam ligados aos rios.

O Pirí representava obstáculo para a integração da cidade, além de veículo de transmissão de doenças. Foi então que em 1779 iniciou-se a primeira etapa de ensecamento da área, sendo construído o Palácio dos Governadores (Palácio Antonio Lemos) e o Largo do Palácio (Praça Felipe Patroni). A região alagada possuía “1.320 metros de largura, por 660 de comprimento, enquanto que a área da cidade na época media 1.500 metros de comprimento por 750 de largura”. Em 1803 a obra continuou, “a área beneficiada estendeu-se ao Arsenal da Marinha, à Igreja da Trindade e ao Ver-o-peso, o que possibilitou a construção das estradas das Mongubeiras (Av. Tamandaré), a de São José (Av. 16 de Novembro) e a de São Mateus (Av. Padre Eutíquio)”10.

Nesses atos refletiam-se os primeiros indícios de conflito, no qual parte da população, bem como os governantes ansiavam por exterminar a existência do complexo alagado do Pirí. O Conflito aí era da população com as águas. Porém, havia embarcações que foram impedidas de navegarem por essas áreas, bem como as lavadeiras e aguadeiros de desenvolverem suas atividades, conflitando seus interesses com o governo e com o restante da população.

“El agua, además de ser un recurso asequible, vulnerable y substancial para la vida, juega um papel complejo y multifacético, tanto en los sistemas naturales como en las atividades humanas. En estas últimas, en repetidas ocasiones actúa como generadora de conflictos en los cuales se pueden observar diversas relaciones de poder, dependencia y solidaridad entre los litigantes”11.

O sítio urbano de Belém vem sofrendo, ao longo dos anos sucessivos processos de aterramento. No início do século XX parte da orla da cidade foi aterrada, desaparecendo reentrâncias e igarapés, para construir um porto para que navios e vapores pudessem escoar a produção de látex. A doca do Reduto foi aterrada. Nesta Doca, a população transitava e escoava sua produção. Com seu fechamento e a abertura de um porto, as atividades da população foram limitadas/ excluídas da área12.

Belém sempre tentou submeter suas águas as vontades dos governantes. Mas, em alguns momentos ela resistiu.

Outro momento que marcou a transformação do sítio de Belém, e que novamente afetou a rede hídrica da cidade, foi a construção de um sistema de dique, comportas e canais, inaugurado em 1944, cujo objetivo era controlar as inundações, provocadas pela oscilação das marés e drenar regiões de baixadas, ligando toda a porção sul da cidade. “O dique evitou o alagamento de 38.540 metros quadrados e o total da área drenada foi de 96.270.000 metros quadrados”13.

Desta maneira,

“Árduas batalhas foram travadas pelo enquadramento das águas de Belém, o que arrebatou, principalmente, aqueles que acreditavam na importância de viver em função do progresso e do desenvolvimento da “civilização” na capital do Pará e que isso significava, entre outras coisas, promover “melhorias” na cidade conectadas, também, ao processo de organização das águas. Ou seja, a construção da cidade fundamentou-se na convicção de que era imperioso vencer as águas, submetendo-as aos planos de expansão da capital do Pará, nos quais ficaram estabelecidos os diversos traçados de ruas, estradas, travessas e largos. Os planos de expansão fundaram-se por sua vez em convicções não raramente constituídas em cidades da Europa, avaliadas como exemplos a serem observados”14.

Apesar de toda a dinâmica de controle das águas, nos anos 1940, ainda era comum ver lavadeiras e aguadeiros, lavando roupas e coletando águas em pipas, discordando de médicos que diziam que as áreas de baixadas eram proliferadoras de moléstias15.

O Sistema de abastecimento de água da população era realizado através de bicas e poços, públicos e particulares, e de aguadeiros que coletavam e faziam a distribuição manual de água16. Em 1800, o governador, mandou construir um chafariz, aproveitando água cristalina e pouco sedimentada, de uma nascente que só os oficiais utilizavam. Quanto ao serviço de abastecimento e comercialização de água em Belém, a Companhia de Saneamento do Pará (COSANPA) destaca:

“Será permitido aos aguadeiros à venda d'água em potes de oito frascos ao preço de 40 reis o pote, sendo o vasilhame bem asseado e a água vendida seja saudável, sob pena de multa de 20 mil reis pela infração e o dobro nas reincidências. A distribuição das águas será feita por meio de oito chafarizes e doze torneiras, e o mais que se julgarem necessários. Estes chafarizes e torneiras fornecerão água gratuita para a extinção dos incêndios. A venda d'água será efetuada ao preço de 20 reis por cada barril de 25 litros. A Empresa terá um sistema de vender água por carroça com barris nas casas particulares ao preço nunca maior de 60 reis por pote de vinte litros”17.

Apenas em 1854 que Belém terá o primeiro sistema de abastecimento de água por encanamento. Em 1881, foi Criado a Cia de água do Grão Pará, e em 1883 foi inaugurado o primeiro sistema de abastecimento de água em domicílio, levando água para 500 prédios. A primeira caixa d’água, cuja obra foi finalizada em 1885, inaugura um sistema de abastecimento de água, captando águas dos mananciais do Utinga. A partir de 1895 a Cia é convertida em inspetoria e a comercialização de água foi proibida. A partir dos anos 1990 a captação de água também é feita através de poços tubulares profundos18.

Ainda hoje a população possui relações conflituosas com o sistema de abastecimento de água em Belém. Existe água, mas não há distribuição qualitativa e quantitativa suficiente para a população. O que gerou vários protestos da população, em 2017, junto a COSANPA.

Quanto ao uso e “manejo” das bacias hidrográficas, o histórico é de conflito e oposição à existência das águas das bacias. Neste contexto, surgem projetos para aterrar, ensecar, retificar, impermeabilizar os leitos, e canalizar os igarapés que compunham as bacias de Belém.

“[...] a ideia de “enxugar” a cidade prevaleceu e marcou várias formas de discursos escritos de dirigentes, inclusive através das posturas, uma vez que o receio das emanações das águas e que a luta em prol do asseio dos chamados espaços públicos da cidade se consolidava”19.

Em 1973, através de um acordo entre a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), e o Governo do Estado elaborou-se projeto para a recuperação das áreas de baixadas, escolhendo uma bacia como projeto piloto. Para Trindade-Junior,

Os estudos que tratam das baixadas de Belém procuram defini-las como sendo os trechos do sítio urbano cujas curvas de nível não ultrapassam a cota quatro, e que chegam a compor cerca de 40% da área mais valorizada da cidade [...] ou ainda como áreas inundadas ou sujeitas às inundações – decorrentes, em especial, dos efeitos das marés e ficaram conhecidas [...] por serem espaços de moradia das camadas sociais de baixo poder aquisitivo. [...] Deve extrapolar o simples significado geomorfológico. Inclusive porque as alterações substanciais que tem ocorrido nessas áreas, devido à construção de canais, tratamento urbanístico, aterros, etc., estabelecem um novo perfil a essas frações do espaço urbano, seja no sentido fisiográfico, seja no caráter do uso do solo e da apropriação das mesmas pelas diversas atividades e camadas sociais”20.

Em 1976 foi firmado um novo convênio, com a inclusão da Prefeitura Municipal de Belém, iniciando o Programa de recuperação das baixadas de Belém (PRB), que tinha duas linhas de procedimentos: o Programa Global, cujos estudos abrangiam todas as áreas de baixadas de Belém; e o Programa de emergência ou Plano de Ação Imediata (PAI), já viabilizando obras na área da bacia do Una.

“O PAI previa a remoção de 722 famílias para outro terreno [...]. A remoção se justificava pela necessidade de trabalhos de drenagem para construir um canal e aterrar a área. Sairiam, portanto, as famílias cujas casas estivessem na zona do canal e às suas margens, já que estas deveriam depois ser negociadas para recuperar o investimento feito”21.

O conflito ambiental existente, em função da convivência da população em áreas degradadas foi apenas transferido para outro lugar, pois a população remanejada não obteve os benefícios da melhoria da qualidade ambiental do lugar. Os órgãos institucionais também entraram em conflito pela diversidade de interesses e pela tentativa de não entrar em confronto com a população remanejada.

Quanto às águas da bacia, que é composta por 18 igarapés, é a maior bacia hidrográfica de Belém, com uma área de 3626 hectares, neste e em outros projetos posteriores tiveram seus igarapés drenados, retificados e revestidos, totalizando 12 km de intervenção direta nos igarapés, que foram transformados em canais.

OBRAS SEMELHANTES TAMBÉM OCORRERAM EM OUTRAS BACIAS.

A bacia da Estrada Nova, composta por 12 igarapés/canais, localiza-se nas várzeas do rio Guamá, com cota topográfica baixa, cujas características naturais proporcionam áreas alagadiças, conforme nos confirma:

“[...] os cursos d’águas presentes na bacia da Estrada Nova sofreram ocupação em suas margens, calhas e planícies de inundação originais. O cenário formado por um processo de urbanização incompleto e precariedade socioambiental afetou a qualidade das águas causada pelo lançamento de esgoto in natura e outros resíduos, além de que a obstrução dos leitos e das várzeas comprometeu a capacidade de conter as águas das cheias, provocando alagamentos, sobretudo em períodos do ano em que a chuva é mais intensa”22.

Em 2006 a Prefeitura Municipal de Belém iniciou o projeto de macro drenagem e urbanização da bacia da Estrada Nova, e com ele subprojeto de revitalização de orla, através do projeto Portal da Amazônia, que integraria parque urbano, vias de acesso, amenidades culturais e atrativos turísticos. Neste sentido, a população seria convidada a conviver com o rio, de forma harmoniosa, já que a população da bacia, sempre enfrentou conflitos ambientais com as suas águas.

O projeto previu o tratamento de sete canais. Em uma parte da bacia a proposta é de tamponamento de canais, dando lugar a canteiros arborizados e equipamentos de lazer; na outra parte priorizasse a drenagem dos canais e duplicação da avenida principal, sendo caracterizado como “projeto de urbanização e saneamento de assentamento precário.

“Este modelo em parte é visto positivamente tanto por técnicos como por moradores pela eliminação do “esgoto a céu aberto”, como pelo fim dos alagamentos. Mesmo porque, o histórico de inundações faz com que muitos moradores tenham uma relação traumática com a água, aceitando em geral qualquer forma de expulsão/controle das águas”23.

O conflito estabelecido na bacia refere-se: retirada da população da orla, cortando lações ribeirinhos, remanejamento da população de áreas drenadas da bacia, valorização da área da orla e afastamento da população mais pobre, convívio da população com os processos naturais da bacia.

Na bacia do Tucunduba, a segunda maior de Belém, os projetos de intervenção são semelhantes a bacia da Estrada Nova. A bacia possui 08 km2 de área, com 14.175 m de extensão, sendo 5.700 m retificados, e 12 afluentes. Em 2000 cerca de 80% de sua população morava em palafitas, o cenário era de favela, tal o aglomerado de casas “suspensas por pernas de madeira” em cima do rio. Várias intervenções ocorreram ao longo de seus afluentes, os quais foram canalizados, aterrados e macro drenados.

No entanto, as relações da população com a bacia, eram diferenciadas. A Bacia do Tucunduba tem sua foz ligada ao rio Guamá, o que permite a circulação de embarcações com pessoas e mercadorias. Esta ligação também permitiu que a população do entorno se acostumasse a viver de acordo com as oscilações da maré, e assim o ir e vir dos barcos e canoas foram ditando o cotidiano. Era comum, ainda nos anos 2000, ver lavadeiras na margem do curso principal, em seu baixo curso, crianças brincando e diversas pessoas pescando. O rio representava sociabilidade, em poderiam ser visto cenas do cotidiano ribeirinho24.

Nos anos 2000 a Prefeitura Municipal de Belém, apoiada pelo Banco Internacional de Desenvolvimento (BID), iniciaou um projeto de recuperação e urbanização da bacia. Este projeto também remanejou parte da população, a população que morava em cima do leito do rio. Mas diferente dos outros projetos, respeitou alguns aspectos naturais e da sociedade. Construiu-se portos, praças e, principalmente, não revestiu o canal principal com concreto e suas margens foram arborizadas. Isto apresentou avanço no que se refere à intervenção urbanística em áreas de baixadas.

A Bacia do Murutucu é outra bacia em Belém e que apresenta destacada importância, pois nela situa-se o sistema de lagos que abastecem a cidade, engloba o Parque Estadual do Utinga (PEUT) e Área de Preservação e Área de Proteção Ambiental (APP) Belém. Existe pressão populacional quanto ao uso das águas e ocupação da bacia. As intervenções diretas na bacia se deram por drenagem e retificação de seus canais, mas não apresenta taponagem.

Já as bacias do Reduto e Val-de-cães foram intensamente modificadas, cujas obras de macro drenagem não foram suficientes para impedir que as áreas alagassem nos períodos de chuvas intensas e de marés altas.

Nas bacias do Paracuri e Mata Fome, os projetos eram intensivos para a remoção da população e revitalização das bacias. Na Bacia do Mata Fome deveria ter sido implementado o projeto “Esse rio é minha rua” que concebia o rio como o principal elemento de gestão urbana. No entanto, as populações das bacias continuam enfrentando os mesmos conflitos com o poder público, reconhecendo a existência das bacias como um transtorno para a população.

O que se tem observado em Belém é que as técnicas que são utilizadas nas bacias de Belém não beneficiaram as características ambientais dos cursos d’água. E cujos conflitos surgem em virtude do controle, do poder público, e da tentativa do controle de recursos ambientais, cujos rios urbanos só mostraram conflitos com a sociedade.

CONSIDERAÇÕES

A população e Poder público em Belém sempre entraram em conflito, no que se refere ás águas de Belém, tanto no que se refere ao seu uso, quanto ao acesso, além da própria existência da rede hídrica de Belém. Os gestores optaram por eliminarem as características dos rios urbanos, no momento em que optaram por eliminarem os leitos naturais e vegetações, salvo algumas raras exceções. “Pontos que estariam em desacordo com o atual debate ambiental de reavaliação das condutas de tratamento de águas urbanas, recuperação ambiental e convívio social com o elemento natural”25. As águas, portanto, não tem cumprido sua função ecológica, pois o elemento hídrico tem recebido uma nova funcionalidade na paisagem urbana, pois o que se buscou com as obras foi a valorização do espaço urbano, mas com pouco destaque as características naturais.

No entanto, cabe ressaltar que nem sempre as águas foram percebidas como inimigas pela população, posto que grande parte da população conseguiu conviver com ela, “Possivelmente para aqueles que percorreram as ruas molhadas, em meio à chuva e/ou adentraram os rios, o contato com águas guardassem significados únicos, talvez por antecederem reencontros queridos, celebrações há muito esperadas, uma resolução aguardada, o descanso de muitos afazeres”26.

Ou seja, os conflitos por água nas cidades das águas representa outro paradoxo, dentro de sua complexidade hídrica, ecológica e social.

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1 Godinho et al., 2016, 6.

2 Acselrad, 2004, 26.

3 Poma, 2017, 152.

4 Castree y Braun, 1998: 34 apud Swyngedouw y Cook, 2017:80.

5 Swyngedouw y Cook, 2017, 81.

6 Bermúdez Buitrago; Di Mauro y Bermúdez Buitrago, 2017, 273.

7 Martinez-Alier, 2017.

8 Acselrad, 2004, 9.

9 Abelém, 1988, 36.

10 Santos, 2016, 3.

11 Ferreyra, 2017, 31.

12 Penteado, 1968.

13 Santos, 2016, 6.

14 Almeida, 2011, 2.

15 Almeida, 2011.

16 Guedes, 2016. Bordalo, 2006.

17 COSANPA, 2014.

18 Guedes, 2016. COSANPA, 2014.

19 Almeida, 2011, 11.

20 Trindade, 1993, 33.

21 Abelém, 1988, 51.

22 Leão, 2014, 8.

23 Leão, 2014, 13.

24 Tozi, 2002.

25 Leão, 2014, 20.

26 Almeida, 2011, 12-13.