Baltasar Dias, «cego da ilha da Madeira»: notas sobre os autos de devoção (Auto do Nascimento, Auto de Santo Aleixo e Auto de Santa Catarina)*

Baltasar Dias, «blind man from the island of Madeira»: notes on his theater of devotion (Auto do Nascimento, Auto de Santo Aleixo and Auto de Santa Catarina)

Carlos NOGUEIRA

(Cátedra José Saramago – Universidade de Vigo)

carlosnogueira@uvigo.es

ORCID: 0000-0002-7439-2989

ABSTRACT: Born on the island of Madeira around 1515, Baltasar Dias is an author that historians of Portuguese literature and culture extol as one of the greatest representatives of Portuguese popular theater and cordel literature in the 16th century. But there are almost no studies on this poet and playwright, who, refusing to be plagiarized by unscrupulous booksellers, obtained from King John III a license to print his own pamphlets. I propose to revisit what is known about the life of this author and clarify some aspects of his theatrical production. Based on his devotional pieces Auto do Nascimento, Auto de Santo Aleixo, and Auto de Santa Catarina, I present in this article some advances in the study of both the dramatic aesthetic of Baltasar Dias and the place that this «poor man» occupies in literary and cultural history.

KEYWORDS: Portuguese cordel literature, 16th century, Baltasar Dias, religious popular theater, Christianity

RESUMEN: Nascido na ilha da Madeira por volta de 1515, Baltasar Dias é um autor que a história da literatura e da cultura portuguesa não ignora e até exalta como um dos maiores representantes do teatro português popular e de cordel do século XVI. Mas são quase inexistentes os estudos sobre este poeta e dramaturgo, que não aceitou ser desapossado do que era seu por livreiros sem escrúpulos e obteve de D. João III uma licença para imprimir os seus próprios folhetos. Proponho-me revisitar o que se conhece da vida deste autor e esclarecer alguns aspetos da sua produção teatral. A partir das peças de devoção Auto do Nascimento, Auto de Santo Aleixo e Auto de Santa Catarina, apresento neste artigo alguns subsídios para o estudo quer da estética dramática de Baltasar Dias, quer do lugar que este «homem pobre» ocupa na história literária e cultural.

PALABRAS-CLAVE: literatura de cordel portuguesa, siglo XVI, Baltasar Dias, teatro popular religioso, cristianismo

As peças de Gil Vicente (1465/70-1536/40) não se destinavam, em primeira instância, à circulação em folhetos, mas os dados mais antigos que conhecemos sobre a história da literatura de cordel portuguesa encontram-se na obra deste dramaturgo. A representação do teatro vicentino na corte (e em locais públicos, onde uma população mais diversificada poderia assistir a essa produção) não obstou a que as criações de Gil Vicente circulassem em formato impresso e fossem alteradas de edição para edição, inclusive depois da publicação, em 1562, da Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente. Carlos Nogueira nota que, graças ao tipo de suporte (o folheto em papel barato), aos métodos de distribuição e à forma de circulação, «uma versão alterada do Dom Duardos circulava ainda como folheto de cordel no século XVIII e o Pranto de Maria Parda permaneceria associado a esta literatura até ao século XIX» (Nogueira, 2012: 205). A conclusão é óbvia, acrescenta o mesmo estudioso: «Não sendo Gil Vicente um autor “de cordel”, beneficiou, contudo, das vantagens editoriais trazidas por uma indústria cultural em crescimento, o que viria a repetir-se com outros escritores da literatura canónica (como António José da Silva ou Bocage)» (Nogueira, 2012: 205).

Todavia, é com os autores da chamada «escola vicentina», na qual pontificam nomes como António Ribeiro Chiado, Afonso Álvares e Baltasar Dias, que a literatura de cordel portuguesa se impõe como área cultural e editorial complexa. Não utilizo a expressão «escola vicentina» apenas para incluir todos aqueles que imitaram o «mestre», em conformidade total com a linguagem e os conteúdos do autor dos Autos das Barcas. É indiscutível que vários autores distenderam, com assinalável autonomia, a herança vicentina. «Tiveram a capacidade de inovar e de criar outra matrizes produtivas, para chegarem a auditórios próprios» (Nogueira, 2012: 205), como aconteceu com Afonso Álvares. Este autor, na linha da copiosa produção de «mistérios», «miracles» e «jeux», prósperos sobretudo em França, trabalhou modelos dramáticos (principalmente hagiográficos) que tiveram uma boa receção junto tanto de eclesiásticos como do povo. Afonso Álvares, um verdadeiro mestre no manejo da língua, articulou linguagem culta, plebeísmos e bilinguismo. Um outro autor, também de sucesso, António Ribeiro Chiado, adotou um único registo linguístico para a caracterização de personagens do vulgo; privilegiou um realismo cuja autenticidade e dinamismo da «paisagem humana [...] pode levar-nos, com máxima segurança, a ler toda a produção de Chiado como vivo documentário histórico e humano da realidade não aristocrática» (Barata, 1991: 132).

Dentro do panorama que acabo de apresentar em traços muito gerais, as obras de maior êxito foram as de Baltasar Dias (c. 1515-c. 1580), nome dos mais proeminentes da literatura de cordel portuguesa, muito apreciado ainda no século XX, mas um dos menos estudados. Este paradoxo tem a sua origem, por um lado, nos muitos vazios que permanecem sobre a vida e a produção teatral deste poeta, e, por outro lado, nos preconceitos críticos e académicos que continuam a pesar sobre a literatura popular, em especial quando se parte do princípio de que o autor pouco ou nada inovou relativamente a uma matriz (vicentina, neste caso). Apesar do muito que se progrediu, continuam válidas estas palavras de Arnaldo Saraiva, no capítulo «As duas literaturas (a “pobre” e a “rica”)», do seu livro Literatura Marginal/izada: «A literatura popular, antiga ou recente, tem sido a maior vítima dos muitos e vários censores que têm existido ao longo da sua história» (Saraiva, 1975: 106)1.

Baltasar Dias, natural da ilha da Madeira, cego e de baixos recursos económicos, recebeu de D. João III, em 1537, a Carta de Privilégio para a Impressão de Livros (Chancell. de D. João III, Liv. XXXIII, fl. 17, dos Privilegios). Através deste alvará real de 20 de fevereiro, escriturado por Anrique da Mota, ficamos a saber que o autor já produzia antes de 1537:

Dom Joham, etc. A quantos esta minha carta virem faço saber que Baltasar Dias, ceguo da ylha da Madeira, me disse por sua petyçam que tem feitas algûas obras assy em prosa como em metro, as quaes foram já vistas e aprouadas e algûas dellas ymprimidas, segundo podia uer por um pubrico estromento que perante mim apresentou.

E quanto elle quer ora mandar ymprimir as ditas obras que tem feitas e outras que espera de fazer, por ser homem pobre e nam ter outra ymdustria para viver por o cariciamento de sua vista senam vender has ditas obras,e me pidia ouvesse por bem, por lhe fazer esmolla, dar-lhe de priuilegio pera que pesoa algũa nam possa ymprimir nem vender suas obras sem sua licença, com certa pena.

E visto todo por mim, ey por bem e mando que nenhum ymprimidor emprima as obras do dito Baltesar Dias, ceguo, que elle fyzer asy em metro como em prosa, nem liureiro algum nem outra nenhûa pesoa as venda sem sua livença, sob pena de quem ho contrairo fyzer algûas obras que toquem em algũa cousa de nossa santa fee, nam se ymprimam sem primeiro serem vistas e enjaminadas por mestre Pedro Margualho, e vindo por elle vistas, e achando que que nam falla em cousa que se nam deva fallar, lhe pase diso sua certidam, com a qual certidam hey por bem que se ymprimam as taes obras e doutra maneira nam. Notefyquo o asy a todos corregedores, juizes, justiças, officiaes e pesoas a que esta minha carta for mostrada, e mando que asy se cumpra sem duvida nem embarguo algum. Dada em minha cidade d’Evora aos XX dias de feuereiro, Anrique da Mota a fez, anno de nacimento de noso senhor Jesu Christo de mil b.º e XXX j annos. (Deslandes, 1888: 20)

Esta Carta é um documento de excecional interesse pelo que nos revela de um dos primeiros movimentos conhecidos de institucionalização dos direitos autorais. É sabido que outros autores, antes de Baltasar Dias, como Gil Vicente e Garcia de Resende, já haviam obtido um privilégio semelhante, mas o poeta da ilha da Madeira não era um letrado da corte. Só por si, o alvará de D. João III já nos diz muito sobre a importância cultural, social e mercantil dos folhetos de cordel e dos poetas ditos «populares» (não pertencentes às elites letradas). Este privilégio concedido a um «homem pobre» é também um sintoma da atenção que o rei e as autoridades davam a quem tinha o poder de influenciar a opinião pública e as mentalidades (voltarei, mais abaixo, a esta questão, quando me referir ao que entendo ser o cristianismo místico de Baltasar Dias). A Carta de Privilégio para a Impressão de Livros revela-nos que a comercialização destes impressos era bastante lucrativa e coloca o tema sensível e intrincado dos direitos de reprodução e das vendas de que apenas beneficiavam os editores. Este documento contém elementos que a ainda insuficiente história do livro e da leitura não pode esquecer: «Aponta no sentido da pluralidade da receção deste tipo de literatura, acessível aos inúmeros analfabetos de então por duas vias» (Nogueira, 2012: 207), como lembra Carlos Nogueira: «pelo processo de retextualização, isto é, da concretização do texto dramático em texto teatral ou texto espetacular; e, muito provavelmente, pela leitura em voz alta, realizada por indivíduos alfabetizados» (Nogueira, 2012: 207).

O sucesso desta produção resulta, acima de tudo, dos meios de distribuição. Estes impressos faziam parte da vida quotidiana dos consumidores, que não necessitavam de empreender grandes ações para os obter. Eram um produto entre muitos outros, acessíveis nos lugares mais isolados (aldeias e vilas do interior do país). Pela primeira vez, paralelamente ao circuito letrado, destaca-se uma clientela de obras literárias que se constitui como um público para quem a leitura é fonte de informação, conhecimento, cultura e prazer. Dispomos de poucos elementos seguros que nos permitam ter uma noção exata da presença da literatura de cordel nas classes populares urbanas e rurais europeias. Mas sabemos que, nos inícios do século XVI, apenas um conjunto muito reduzido de clérigos e de letrados têm acesso aos livros. Entretanto, ao longo de todo o século, o número de compradores aumenta e torna-se mais diversificado. Integram-no as chamadas pessoas de trajo, a pequena nobreza de província, pequenos proprietários de terras; nos séculos XVII e XVIII, dele fazem parte também camponeses abastados, artesãos e comerciantes; no século XIX, da clientela destes impressos começam cada vez mais a fazer parte pessoas do povo do campo2. Em meados do séc. XIX, como se sabe, Portugal albergava uma população maioritariamente iletrada, com mais de 75% de analfabetos. Quem sabia ler transmita o conteúdo dos folhetos à maioria de analfabetos, muitos dos quais assumiam o papel de transmissores desse património, por via da memorização e da oralidade. A multiplicidade dos temas e a qualidade linguística e estética muito diversa dos textos de cordel sugerem-nos uma conclusão: tratava-se de um público leitor heterogéneo, com poder económico, interesses culturais e gostos muito distintos, composto não só por gentes com posses e instruídas mas também por gentes das classes menos abastadas, da cidade como do campo.

Em Portugal, estes folhetos de grande circulação são também conhecidos, em especial pelos estudiosos, por uma designação que tem a ver com a problemática de uma parte dos agentes implicados na criação dos conteúdos e na distribuição: «Literatura de cego». Baltasar Dias entra nesta categoria bibliográfica como autor «carecido de vista», como se lê na capa de um dos seus folhetos (Auto de Santa Catarina), onde também consta «Baltasar Dias da ilha da Madeira». A vida de versejador e vendedor de folhetos em Lisboa, para onde terá ido jovem (Gomes, 1983: 40), não foi imediata nem isenta de conflitos e dificuldades. Sem a Carta de Privilégio que requereu ao rei e sem a persistência e o trabalho de quem tinha na arte verbal um modo de vida a tempo inteiro, o poeta cego madeirense não se poderia ter tornado num dos mais eminentes nomes da literatura popular portuguesa. Atentos ao sucesso das composições que Baltasar Dias interpretava na capital portuguesa e nos arredores, livreiros sem escrúpulos apropriavam-se daquilo que não lhes pertencia e lucravam com o que imprimiam e vendiam um pouco por todo o país. O autor, «homem pobre», sustentava-se com o seu trabalho de vendedor de folhetos e com as interpretações que fazia das suas próprias obras, cuja retribuição monetária, maior ou menor (ou nula), ficava ao critério de quem o ouvia.

As teses de Teófilo Braga sobre as relações entre os agentes cegos, como Baltasar Dias, o público e a sua composição encontram-se hoje superadas. No trabalho precursor «Os livros populares portugueses (folhas volantes ou literatura de cordel)» (1881), que na altura influenciou decisivamente o conceito de «literatura moderna», este autor associava a várias obras e géneros ditos populares um grupo particular de agentes que se ocupavam da venda ambulante dessa literatura popular: os cegos, cujos interesses eram defendidos por uma organização: a Irmandade do Menino Jesus dos Homens Cegos. Baseado em testemunhos literários do século XVIII (de Filinto Elísio, Nicolau Tolentino e Bocage) e nalguma documentação sobre a Irmandade, Teófilo Braga deduzia que «os livreiros das folhas volantes andaram sempre em luta com os cegos» (Braga, 1885: 480). Este problema deve ser tratado desde uma perspetiva mais flexível e menos linear, «já que nem a competência da venda ambulante era exclusiva da Irmandade, nem os conflitos podem ser reduzidos à luta entre cegos e volanteiros» (Curto, 1993: 136). Esta asserção é de Diogo Ramada Curto, que acrescenta:

Os registos judiciais respeitantes aos agentes comprometidos na circulação dos impressos, no século XVIII, sugerem não só a existência de inúmeros conflitos —entre cegos vendedores de impressos, vários tipos de livreiros e outros agentes— mas também a dificuldade sentida pelas próprias instituições em definir os mesmos conflitos, isto é, uma espécie de lutas de interpretação. (Curto, 1993: 137)

Nos processos judiciais entravam vários tipos de agentes: cegos (que, como Baltasar Dias, podiam acumular três funções: autor, narrador-intérprete-ator e vendedor); volanteiros, que vendiam pelas portas a preços mais baixos do que os praticados nas livrarias; cegos que não são da Irmandade e que se dedicavam à venda de impressos; livreiros, às vezes livreiros estrangeiros, com ou sem loja; impressores que pretendiam ser livreiros; e outros comerciantes, com loja aberta, que não pertenciam à Corporação de Livreiros (Curto, 1993: 132). Esta diversidade sugere que não é possível associar e generalizar de modo simplista e redutor, numa perspetiva historiográfica, todos estes agentes às classes populares. O raciocínio que desencadeia a adulteração da análise deste fenómeno tem a ver com a sobrevalorização tanto do critério bibliográfico (a materialidade dos folhetos) como da modalidade de transmissão (a venda ambulante), com prejuízo do estudo do seu conteúdo. A composição do público era muito variada, ou não teriam chegado até nós tantas reações de autores da chamada literatura culta contra as obras e os autores da literatura de cordel. Os textos que circulavam sob a forma de folheto alcançariam um público vasto e de condição socioeconómica muito diversa, desde a casa real à aristocracia, das camadas mais cultas da população à burguesia e aos grandes proprietários de terras, até, acima de tudo, sem dúvida, ao povo de menores recursos.

Convém não esquecer: é na materialidade do papel que esta literatura lida, mas também representada, tem a sua unidade. À semelhança do que acontecia na corte e nas classes privilegiadas da sociedade, os particulares também acolhiam nas suas casas espetáculos teatrais (às vezes apenas declamados ou cantados), para celebrar nascimentos, aniversários ou casamentos, e para marcar momentos religiosos cíclicos. Gerou-se, por conseguinte, uma literatura compósita que não refletia apenas os interesses e as competências literárias da classe média e dos grupos mais favorecidos ou letrados; era também acessível às classes sociais economicamente mais desfavorecidas. O cego Baltasar Dias encontra-se bem no centro de todo este processo como agente ativo e criativo: escrevia (alguém transcrevia os seus versos para o papel), recitava e comercializava folhetos de cordel; era um homem de cultura, um trabalhador e um empresário. Poder-se-á deduzir que terá talvez vendido obras de outros, mas predominariam as composições da sua autoria, algumas das quais poderão ter sido encomendadas, a avaliar pelo sucesso dos seus autos de devoção e pela boa receção que essas obras tinham na sociedade do tempo.

A morte de Gil Vicente traduziu-se no desaparecimento do seu teatro. A entrada em Portugal da nova produção teatral italiana determinou o desenvolvimento do auto junto de outro público: «Os autos [...] descem providencialmente para o povo, que os acolhe e faz rodear do seu entusiasmo e aplauso» (Gomes, 1983: 29). Com essa tendência, «deu-se, afinal, lugar à formação do gosto por estes espectáculos por parte de um auditório que nem sempre era lembrado pelos governantes, no tocante ao robustecimento da cultura» (Gomes, 1983: 29). Numa palavra: as camadas populares aproximaram-se dos géneros e dos subgéneros dramáticos que até aí eram consumidos quase exclusivamente nos restritos circuitos cortesãos. A imprensa desempenhou um grande papel na popularização de um teatro que antes se circunscrevia a circuitos menos amplos.

É neste contexto de grandes mudanças socioculturais que temos de entender e avaliar Baltasar Dias, que soube congregar temáticas e estruturas tradicionais com aspetos inovadores, especialmente a emotividade da linguagem simples, a finíssima observação do quotidiano e uma contagiante espiritualidade que, como defenderei mais abaixo, não é apenas a consequência direta da mediação eclesiástica entre o divino e o terreno. Apesar de, como tem sido notado por vários críticos literários e de teatro, ser mais ou menos pacífico afirmar que este poeta popular não possuía o talento de autores como António Prestes, Simão Machado ou António Ribeiro Chiado, há uma evidência: nenhum outro seu contemporâneo cativou tanto a atenção do público. Daí este meu artigo, que visa contribuir um pouco para o conhecimento e a revalorização da obra do «cego da ilha da Madeira». O nome de Baltasar Dias figura nos três livros de História do Teatro Português (Luciana Stegagno Picchio, 1964; Luiz Francisco Rebello, 1968; José Oliveira Barata, 1991), mas é diminuta (embora valiosa) a atenção que aí lhe é dedicada. O livro Poesia e Dramaturgia Populares no Séc. XVI. Baltasar Dias, de Alberto Figueira Gomes, publicado em 1983 numa coleção de vasta divulgação e ainda hoje disponível, constitui uma muito bem fundamentada introdução geral a esta obra, à qual deve ser dada continuidade em estudos que esclareçam aspetos específicos. Para mais, as obras de Baltasar Dias de que há exemplares em folhetos estão disponíveis numa edição da Imprensa Nacional, organizada também por Alberto Figueira Gomes: Baltasar Dias. Autos, Romances e Trovas (1985). A plataforma em-linha Teatro de Autores Portugueses do Século XVI – Base de Dados Textual, do Centro de Estudos de Teatro (sediado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), disponibiliza de Baltasar Dias quatro autos e uma tragédia: Auto de Santa Catarina, Auto de Santo Aleixo, Auto do Nascimento e Tragédia do Marquês de Mântua.

Baltasar Dias era um «homem pobre» (insisto), mas não um inculto. O rigor com que maneja a língua portuguesa e o castelhano, o recurso ao latim e as citações de autores como Terêncio, Cícero ou Ovídio dizem-nos que este autor se movia com um certo à-vontade no campo da literatura e da cultura eruditas. Esta pertença bicultural terá sido reforçada pela circunstância de ter talvez recorrido ao auxílio de um copista (um profissional), a quem ditaria as suas obras, para ultrapassar as suas limitações visuais. Quer isto dizer que os seus textos, escritos para serem vendidos em folhetos de cordel, não eram consumidos apenas pelas classes populares, como já se tem dito; interessariam a um público com mais ou menos poder económico e com interesses culturais distintos entre si. Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que as suas composições são escritas para serem interpretadas (ou, literalmente, no caso das peças teatrais, representadas), ditas e ouvidas por um público iletrado mas também alfabetizado.

Literatura escrita, literatura oral, literatura oral escrita, literatura escrita oralizada: nenhuma destas expressões, isolada, recobre a produção de Baltasar Dias. Só o uso cuidadoso e sempre relativo de cada uma delas permite situar uma obra como a do poeta cego da ilha da Madeira, que era tanto um poeta da oralidade como um poeta da escrita; um artista «profissional», epíteto que se lhe aplica sobretudo a partir da concessão da Carta de Privilégio para a Impressão de Livros, que lhe veio garantir poder ser retribuído tanto pelo seu trabalho de intérprete (cantor, declamador, ator, também), de autor e de vendedor. Baltasar Dias, como qualquer poeta oral da época e como qualquer poeta oral de hoje (pensemos no caso brasileiro), tinha no folheto o suporte, a continuação e a salvaguarda da sua voz (até num sentido estrito, porque o poeta era cego); e nesta, por sua vez, convergia (e converge, em poetas populares, insisto, como os brasileiros) a responsabilidade de veicular esteticamente, memoravelmente, mensagens de um modo mais eficaz do que em qualquer outro registo. Num poeta como Baltasar Dias temos um antecedente longínquo do escritor profissional, tal como se impôs desde pelo menos o Romantismo e tal como o conhecemos hoje: alguém cujo modo de vida e cuja sobrevivência económica depende literalmente da venda dos impressos com as suas obras. Em Portugal, até sensivelmente finais da década de 70 do século passado e mesmo ainda hoje em casos muito raros (até em Lisboa, como já pude presenciar e gravar), esta realidade de séculos, mutatis mutandis, era observável um pouco de norte a sul do país: «O poeta tinha o folheto, aberto, na mão, mas não lia o texto literalmente; declamava-o com variantes, como os Moritatensänger que fingiam ler o Flugblatt, mas na verdade memorizam-no , improvisando-o» (Lemaire, 2010: 91).

De Baltasar Dias, que escreveu «assim em prosa como em metro» (Carta...), não chegaram até nós mais do que oito obras em verso. Nos Conselhos para Bem Casar e na Malícia das Mulheres (esta muito glosada ainda no século XX), sátiras em quintilhas heptassilábicas, metro tradicional que o autor empregou em detrimento das estruturas clássicas, Baltasar Dias critica a sociedade do seu tempo, sobretudo o que ele entendiam serem os vícios e a falsidade do sexo feminino (este tipo de conselhos para o casamento e estas sátiras misóginas são também muito comuns na literatura de cordel espanhola). Na Tragédia do Marquês de Mântua, no Auto do Príncipe Claudiano e na História da Imperatriz Porcina, versões portuguesas das histórias maravilhosas, sobressaem personagens de lendas medievais e do ciclo de Carlos Magno, que tinham grande visibilidade na Europa e eram divulgadas em Portugal por traduções castelhanas e francesas. Permaneceram também três autos religiosos, «autos de devoção», segundo a linguagem dos estudos de Teatro: o Auto do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Auto de Santa Catarina e o Auto de Santo Aleixo (cujas datas das primeiras edições se desconhecem). Centrar-me-ei, a seguir, nestes autos, para propor linhas de leitura das formas e das ideias do teatro religioso de Baltasar Dias que constituam ao mesmo tempo perspetivas sobre a mentalidade do autor e da sociedade do seu tempo, e sobre o lugar da literatura (e do teatro, em particular) no palco do devir humano e social.

Revisitar a obra ou alguns dos textos literários de um autor como Baltasar Dias é compreender mais em profundidade não só a história portuguesa como a da humanidade, feitas de intercâmbios de mundividências entre espaços dominados e de dominação. Significa ficarmos mais atentos às relações entre o local e o global, o nacional(ista) e o universal(ista), bem como aos usos, à receção e aos efeitos pragmáticos da literatura e da arte. A criação literária de Baltasar Dias e todo o seu trabalho performativo e de difusão dos seus textos não é apenas a ocupação simples de um humilde e pobre poeta nascido na ilha da Madeira. Constitui um lugar de chegada e de partida de múltiplos elementos idiossincráticos de um homem, de um país, de uma Península (Ibérica), de uma Europa e de um mundo (o das Descobertas) que se reconfiguravam, não sem os sofrimentos e os horrores de uma, até hoje sem fim, «guerra religiosa». Uso esta expressão num sentido literal e numa aceção mais metafórica. No tempo de Baltasar Dias e, muito em especial, nos anos que antecederam a Carta de Privilégio para a Impressão de Livros que lhe foi outorgada por Dom João III, irradiava por toda a Europa a doutrina luterana. A Península Ibérica católica opôs-se ao que as elites consideravam um movimento subversivo da ordem instituída por Deus e pela Igreja. O tempo era já o do Renascimento e as mudanças, tal como as contradições e os impasses, iam-se instalando. Para renovar a Universidade de Coimbra, D. João III chama alguns dos mais cultos académicos da Europa; o humanista Sá de Miranda desloca-se a Itália, aí vive alguns anos e, quando regressa, introduz em Portugal uma poesia nova nas ideias e nas formas; Erasmo, «que fora admitido na vizinha Espanha com visível entusiasmo, de súbito encontrará a maior oposição» (Gomes, 1983: 45) em Portugal, onde o fervor religioso mais uma vez se desencadeava. Fortalecia-se a relação entre o Estado e a Igreja, como reação ao luteranismo e às suas tendências inicialmente democráticas de retirar o poder das mãos do Papa e do clero e de o devolver a quem encarnou e fez o cristianismo: os homens e as mulheres comuns.

A teologia da Reforma preconizava a transferência do poder do clero para o povo e aboliu todas as entidades mediadoras do cristianismo medieval (Maria e os santos) que atenuavam a distância entre Deus e a humanidade. Portugal, apesar do Renascimento e de todas as transformações, permanecia ainda, em grande parte, na Idade Média. A introdução da Inquisição em 1536, depois de anos de pressão junto da Santa Sé e pedida já em 1515 por D. Manuel I, é disso um sintoma. Tanto para Baltasar Dias como para os seus contemporâneos, o tutelar e trágico rei D. Sebastião, desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir em 1578, era um Messias; um cavaleiro medieval, um pai que se sacrificou. O poeta madeirense, que terá morrido por volta de 1580 (ano em que se iniciou em Portugal a Dinastia Filipina, com Filipe II de Espanha, I de Portugal), aceitava e perpetuava a tradição com fé e abnegação. Simultaneamente, contudo, Baltasar Dias inovava, situava-se numa linha que não era apenas a do cristianismo eclesiástico português e ibérico, contrário à Reforma Protestante. Fê-lo com discrição, sempre preocupado com a Censura, que não hesitava em cortar e em alterar tudo o que pudesse pôr em causa a ortodoxia. Explico-me, já a seguir.

Os autos de Baltasar Dias são um elogio não só de Deus e de Cristo, mas também dos santos que o protestantismo estava a eliminar do imaginário religioso. Um Cristo humanizado, em contacto com o povo, é um dos efeitos mais originais do Auto de Santa Catarina; é um filho de Deus de certo modo desdivinizado, embora não nos termos do futuro Cristo de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro. Este Cristo não diz mal de Deus, como o pessoano, não é uma criança que foge do Céu para ser como as outras crianças. Baltasar Dias põe em cena um Cristo homem cujo casamento com Catarina prossegue a tradição, que vem pelo menos do século XI, das mulheres místicas que recebem o seu noivo celestial, e cuja presença, na pintura medieval, renascentista e posterior, é longa (por exemplo: a pintura a óleo sobre carvalho, datada de cerca de 1480, do pintor flamengo Hans Memling, conhecida como o Casamento Místico de Santa Catarina ou Virgem e o Menino com as Santas Catarina de Alexandria e Bárbara de Nicomédia). O Cristo dramatizado pelo poeta nascido na ilha da Madeira é homem, não o Cristo-criança no colo da Virgem Maria, como se vê em várias pinturas. Baltasar Dias conhecia esta herança, que não entra na história canónica da Igreja e dos santos, mas à qual os imaginários culto e popular deram tons ao mesmo tempo realistas e místicos.

Não me parece que possamos saber se a humanização de Jesus por Baltasar Dias constituiu uma reação consciente a esse ambiente europeu de sangrento confronto religioso. Tê-lo-á sido, provavelmente, porque o poeta era um homem a quem não faltava formação religiosa, adquirida talvez primeiro na Madeira, onde terá sido ensinado por algum clérigo culto (Gomes, 1983: 47), e depois em Lisboa, ao frequentar atos religiosos e ao conviver com gente devota. Por um lado, o dramaturgo, temente a Deus e cultor dos dogmas, voltado para uma espiritualidade que se expressa em palavras, objetiva os Evangelhos e o culto católico oficial; aceita a hierarquia de poder que fluía de Deus para o Filho e daí para o Papa e restante clero. Por outro lado, Baltasar Dias professa uma interioridade mística que discretamente se opõe ao cristianismo eclesiástico: Deus valoriza e diviniza todas as pessoas que acolhem o seu Espírito. Em Catarina e no diálogo que ela tem com Cristo, no Auto de Santa Catarina, transparece a ideia transversal a todo o misticismo cristão, conscientemente assumido ou vivido mais do que percebido como tal: a busca espiritual é um empreendimento mais individual do que coletivo, chega por intermédio não só do poder que vem do alto mas também emana do interior. O êxtase místico, que cada leitor ou ouvinte vivenciará na sua intimidade pessoal e intransmissível, coincide, antes de mais, com os momentos em que Cristo e a Virgem são descritos e louvados através de uma sucessão de impressivas apóstrofes, metáforas e imagens. Levada para a prisão por ordem do Imperador e antes da célebre disputa com os três Doutores da Lei, Catarina profere palavras como estas:

Ó Clementíssimo Rei,

verdadeiro Deos e Homem

com que graças poderei

louvar Vosso Santo Nome

remédio da nossa Lei!

Ó meu Senhor que não sei

nenhuns louvores com quê

louve tão alta mercê,

como de vós alcancei,

sem haver rezão porquê.

Ó grandeza sem medida,

ó alteza incomparável,

ó fonte que mana vida,

ó virtude perdurável,

mas de glória sem saída,

dai-me ciência comprida

para fazer conhecer,

que vós só fazeis viver

a mortal gente perdida,

que, sem vós, não pode ser. (Dias, 1985: 143)

Baltasar conhecia bem o seu público e os contextos logísticos e materiais da representação das suas peças. Um estilo sublime, enfático e retórico, como era o de tragédias da literatura canónica como A Castro (c. 1556-1557), de António Ferreira, não estava nos propósitos de Baltasar Dias, nem, decerto, ao seu alcance. Nem tal teatro seduziria o seu público (que, como já referi, era, com certeza, mais heteróclito do que poderemos pensar, se nos deixarmos iludir pela expressão «teatro popular»). A ação do Auto de Santa Catarina, com não mais do que duas personagens em cena, é rápida, mas não em excesso; daí resulta que o conjunto das falas, de tamanho muito variável, não incorre em monotonia; o verso de sete sílabas, o metro por excelência da poética oral e popular, bem como os variáveis esquemas rimáticos, trazem uma fluência e uma comunicabilidade compatível com uma mensagem que deve ser tão edificante quanto compreensível e animadora da fé e da vivência do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Esta poética não obsta a uma substancial e sedutora sublimidade retórico-estilística, dentro de uma verosimilhança compatível com o quadro sociocultural. Numa réplica como a seguinte (de Catarina), o estilo não é sublime à maneira do teatro humanístico, sem dúvida, mas é-lhe inerente uma solenidade estética e religiosa compatível com a constituição humano-religiosa e mística da personagem, que se quer esposa de Cristo. As bem medidas e laudatórias apóstrofes estabelecem uma arquitetura musical que é complementada por um ritmo, uma grandeza sonora e uma imagética de grande comunicabilidade:

Caterina

Ó Virgem Santificada,

mezinha de Israel

vós que fostes saudada

da angelical Embaixada

pelo Anjo Gabriel,

e merecestes trazer

do Santo Ventre escondido

aquele que foi nascido

para curar e prover

o mundo que era perdido;

vós que fostes concebida

sem pecado original,

e vós que fostes nascida

para curar a ferida

da linhagem humanal;

vós, Madre celestial,

fonte que mana piedade,

mar que navega humildade,

remédio do nosso mal,

Arca da Santa Trindade;

Pois vós sois madre de Deos

e sois rainha dos Anjos

porta da glória dos ceos

e senhora dos Arcanjos

emparo dos que são seus,

dai remédio aos males meus,

tota pulchra mea,

ó Virgem de graças chêa,

de quem falou S. Mateus,

que órfã em terra alheia. (Dias, 1985: 121)

Baltasar Dias, cego, via com palavras, e nelas concentrava toda a sua espiritualidade. Interessa-lhe mais a vivência íntima da mensagem de Deus e o efeito emocional do verbo do que os pormenores plásticos das personagens e dos ambientes. O seu foco está no ser, não na exterioridade das coisas e das pessoas. A matéria-prima de temas e motivos vai o poeta buscá-la a diversas fontes: às Escrituras e, particularmente para o Auto de Santa Catarina, à Legenda Áurea (coletânea de narrativas hagiográficas, reunidas por Jacobo de Voragine, por volta de 1260, e muito influente durante a Idade Média), ou, mais propriamente, a alguma das coletâneas conhecidas sob a denominação genérica de Flos Sanctorum, lidas e procuradas por um público vasto e heterogéneo, incluindo os criados, que «pediam a quem soubesse ler que lhes desse a conhecer a vida do santo da sua predileção, a troco do próprio soldo» (Lucas, 2001, 308); e, provavelmente, para o Auto de Santo Aleixo, ao Livro da Vertuosa Benfeytoria (c. 1418-1433), da autoria do Infante D. Pedro (Rocha, 1952: 6), ou a alguma réplica dessa versão. Obviamente: Baltasar Dias também não rejeita a tradição oral e popular, em especial, como já sublinhei, no que tem a ver com o legado dos casamentos místicos de Cristo com as suas noivas. Não é pequena a sua cultura sobre o Velho e o Novo Testamento, nem residuais os seus conhecimentos de teologia. A presença de Cristo, de José, de Maria, de Santo Aleixo, etc., sem desviar Baltasar Dias da componente sacramental, garante-lhe uma experiência mais próxima e pessoal com o Deus vivo, com o seu Filho e com o Espírito Santo, essa Trindade que no Auto de Santa Catarina é um dos grandes tópicos dos diálogos entre Catarina e o Imperador.

A posição da Igreja, ambivalente, usava a censura para se defender de excessos que pudessem fazer ruir o edifício eclesiástico. Tolerava e até incentivava o teatro religioso, desde que não se sugerisse que poderia haver um contacto demasiado direto com Deus e com os santos e as santas. Para isso, obviamente, existia toda a estrutura eclesiástica. Não custa imaginar o desagrado dos inquisidores perante a união de Cristo com Catarina, no Auto de Santa Catarina, que não terá sido censurado porque a tradição culta e popular era já demasiado forte. Censurar a peça seria, além do mais, tornar visível o que por certo era mais intuído pelos crentes do que um verdadeiro perigo para a hierarquia eclesiástica. A experiência direta de Cristo na intimidade de cada pessoa, como em Catarina, não seria necessariamente entendida pelo povo como uma rejeição dos canais exteriores da graça (o Papa, os padres, etc.), para mais num catolicismo marcado por práticas, sacramentos e costumes muito institucionalizados no dia a dia social e por uma vigilância inquisitorial rígida.

Afirmei, no parágrafo anterior, que a Igreja Católica condescendeu perante o teatro popular religioso e até o terá promovido. A questão é mais complexa do que poderá parecer, porque a combinação entre o sagrado e o profano era uma tendência deste teatro. No Auto do Nascimento, os elementos profanos (como as cenas cómicas, a linguagem solta de várias personagens —os judeus usurários, a velha bêbada e pródiga em pragas, o vilão e os pastores—, o riso, numa palavra) atravessam toda a peça, que, neste aspeto, é muito diferente do Auto de Santa Catarina e do Auto de Santo Aleixo. Uma passagem como a que cito a seguir permite-nos imaginar o incómodo e o desagrado das autoridades eclesiásticas da altura, que ordenavam aos fiéis «Que nom comam, nem bebam, nem façam jogos, nem representações nas igrejas nem adros» (na Constituição do Bispado de Évora, de 1534: título 15, lei 10) e «Que nom ponham cousa algũa profana nas igrejas, ermidas, nem adros» (na Constituição do Bispado de Évora, de 1534: título 15, lei 11):

Velha

Praza a Deos que má doença

e que má dor despinhela

mau quebranto de canela

má caganeira e corença

mau inchaço de guela,

má caidura de sela,

mau couce de ferradura,

má febre e má quentura,

má dentada de cadela:

mau pesar e má amargura;

mau comer e mau beber,

mau vestir e mau calçar,

mau erguer e mau geitar

te faça logo morrer. (Dias, 1985: 63)

A praga prossegue por mais quase sete dezenas de versos, mas o início é suficiente para se perceber o registo, de inspiração vicentina, superlativo e avassalador; um registo humano, realista e grotesco que Baltasar Dias, até lhe ser concedido o alvará, quis transpor para a sua peça e em relação ao qual a censura, preocupada mais com marcas de luteranismo e erasmismo, se mostrava transigente (depois, com o privilégio do rei, o poeta retraiu-se e as suas obras, pelo menos aqueles de que há exemplares, deixaram de contemplar o burlesco).

O movimento dos autos de devoção de Baltasar Dias faz-se de oposições inequívocas entre personagens, entre o bem e o mal, entre visões do mundo radicalmente distintas, como era próprio da época e como é característico da literatura popular: entre os males da riqueza e as virtudes da pobreza, entre os vícios do corpo e a pureza da castidade, entre a arrogância humana e a consciência da efemeridade da vida terrena, entre a vida sem sentido e a vida em Deus. Os conflitos são psicológicos e emotivos, mas a vertente intelectiva também atravessa estas peças: quer encarnada nas personagens principais, que se esforçam por compreender o mundo, a natureza humana e justificar a razão da sua fé, quer na mundividência religiosa global que ressalta de cada auto de devoção e do conjunto dos três, e que coincide com a visão humano-religiosa de Baltasar Dias. A felicidade não é na Terra que se alcança, porque o ser humano é um pecador inveterado que só Deus, na sua infinita misericórdia, pode salvar. Esta é a crença inabalável de Baltasar Dias (que ecoa ininterruptamente nas falas das suas personagens), cujos autos religiosos se inscrevem num cristianismo tradicional e lendário e, em parte, o reescrevem dramaticamente: do corpo da degolada Santa Catarina sai leite, não sangue (tópico que faz parte da descrição medieval popular da vida de Catarina de Alexandria); a mão de Aleixo morto, que, segundo a lenda, se abriu para entregar a carta ao papa, é à esposa que se abre, com o que se modifica «o espírito teocrático da Legenda Aurea» (Gomes, 1983: 88) e se humaniza misticamente a dor, a abnegação e a crença; os funerais «espetaculosos com que fecham os Autos de S. Aleixo e de Santa Catarina, no meio de cânticos e desfiles» (Gomes, 1983: 88-89), são a recompensa pela fidelidade a Deus e a entrada no seu Reino.

Apenas a entrega a Deus Pai e ao seu Filho único, Jesus Cristo, pode remir os pecados do mundo e de cada cristão. Nisto, Baltasar Dias está de acordo com o cristianismo eclesiástico medieval e, em parte, também com o protestantismo que então se difundia pela Europa. Em relação a estas teologias, a diferença da visão e da prática religiosas do «poeta pobre» nascido na ilha da Madeira é, ainda assim, tal como a entendo, assinalável: Baltasar Dias, cego para as coisas mundanas, não prescinde dos santos e dos seus atos de abnegação exemplares; abrigado bem dentro do cristianismo eclesiástico, o teatro dá-lhe acesso a uma experiência de espiritualidade mais profunda: mística, porque mais pessoal e mais próxima do que ele sentia ser o Deus verdadeiro, Cristo e o Espírito Santo.

TRABALHOS CITADOS

BARATA, José Oliveira (1991): História do Teatro Português, Lisboa, Universidade Aberta.

BRAGA, Teófilo (1885): O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, vol. II, Lisboa, Livraria Ferreira – Editora.

Constituição do Bispado de Évora, Lisboa: Germam Galharde, 1534. <https://purl.pt/14928>. Consultado em: 18/05/2021.

CURTO, Diogo Ramada (1993): «Dos livros populares», in Tradições, Joaquim Pais de Brito (ed.), Lisboa, Pomo, pp. 131-147.

DESLANDES, Venâncio (1888): Documentos para a História da Tipografia Portuguesa nos Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa Nacional.

DIAS, Baltasar (1985): Baltasar Dias, Autos, Romances e Trovas, introdução, fixação de texto, notas e glossário de Alberto Figueira Gomes, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

FERNANDES, Maria de Lurdes Correia (2004): «Cartas de sátira e aviso: em torno dos folhetos Malícia das Mulheres e Conselho para Bem Casar de Baltasar Dias», Península. Revista de Estudos Ibéricos, 1, pp. 161-181.

GOMES, Alberto Figueira (1983): Poesia e Dramaturgia Populares no Século XVI – Baltasar Dias, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.

LEMAIRE, Ria. (2010): «Pensar o suporte – Resgatar o patrimônio», in Cordel nas Gerais. Oralidade, Mídia e Produção de Sentido, org. de Simone Mendes, textos apresentados no «1.º Colóquio Internacional sobre Literatura de Cordel: Oralidade, Mídia e Produção de Sentido», realizado em novembro de 2008, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fortaleza, Expressão Gráfica Editora, pp. 67-93.

LUCAS, Maria Clara de Almeida (2001): «Hagiografia medieval», in AA.VV., História da Literatura Portuguesa. Das Origens ao Cancioneiro Geral, vol. 1, Lisboa, Publicações Alfa, pp. 305-320.

MANGERONA, Ricardo Filipe Afonso (2019): O Romanceiro no Teatro Quinhentista: a «Tragédia do Marquês de Mântua» de Baltasar Dias, um Caso de hipertextualidade, dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses, apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Edição do Autor.

NOGUEIRA, Carlos (2012): «A literatura de cordel portuguesa», eHumanista, 21, pp. 195-222.

PICCHIO, Luciana Stegagno (1964): Storia del Teatro Portoghese, Roma, Edizione dell’Ateneo.

REBELLO, Luiz Francisco (1968): História do Teatro Português, Lisboa, Publicações Europa-América.

REIS, Jaime (1993): O Atraso Económico Português, 1850-1930, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

ROCHA, Andrée Crabbé (1952): Auto de Santo Aleixo de Baltasar Dias, Coimbra, Coimbra Editora.

SARAIVA, Arnaldo (1975): Literatura Marginal/izada, Porto, s.e., 1975.

Fecha de recepción: 18 de mayo de 2021
Fecha de aceptación: 31 de agosto de 2021

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* Trabalho financiado por fundos nacionais, através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), no âmbito do Centro de Estudos em Letras, com a referência UIDP/00707/2020, Portugal.

1 Por isso mesmo, destaco dois estudos sobre Baltasar Dias que contrariam os preconceitos e a indiferença da generalidade dos especialistas de várias áreas do conhecimento em relação à literatura dita popular: «Cartas de sátira e aviso: em torno dos folhetos Malícia das Mulheres e Conselho para Bem Casar de Baltasar Dias» (Fernandes, 2004: 161-181); e O Romanceiro no Teatro Quinhentista: a «Tragédia do Marquês de Mântua» de Baltasar Dias, um Caso de Hipertextualidade (Mangerona, 2019).

2 Já antes a literatura de cordel chegava às áreas rurais, obviamente, mas o fenómeno intensifica-se nesta altura. O processo de alfabetização de massas não foi uniforme em toda a Europa: principia na Europa do Norte «educada» e só depois se estende à Europa do Sul «ignorante» (Reis, 1993: 229).