O campo lexical da água em romances da tradição oral moderna portuguesa

The Lexical field of water in ballads of Portuguese modern oral tradition

Natália ALBINO PIRES

(Escola Superior de Educação – Instituto Politécnico de Coimbra / Cátedra UNESCO em Património Imaterial e Saber-Fazer Tradicional e CIDEHUS – U.Évora / Instituto de Estudos de Literatura e Tradição – NOVA FCSH / Centro de Investigação em Artes e Comunicação - UAlg / CREILHAC – Assane Seck (Senegal) / Centro de Estudos Históricos da Lourinhã)

npires@esec.pt

https://orcid.org/0000-0002-8906-3336

RESUMO: O elemento água possui em todas as culturas um valor simbólico, ancestral, sendo possível rastrear, ao longo da história da humanidade, a importância que a água teve e tem para as diferentes culturas e os valores simbólicos que lhe foram sendo atribuídos. De objeto de culto a símbolo de vida, a água surge também associada a diferentes práticas culturais. Nesta medida, encontramos referências à água na literatura ou na pintura e constatamos que, nestas expressões, são evidenciados os valores simbólicos que cada comunidade atribui ao elemento água. Assim, tendo por base a importância e os valores simbólicos do elemento água em diferentes culturas, em diferentes práticas culturais e em diferentes expressões, revisitamos os constructos simbólicos associados ao elemento água na literatura, muito particularmente num género de cariz oral: o romanceiro. De modo muito particular, pretendemos analisar as opções linguísticas do campo lexical de água em romances da tradição oral moderna ibérica, procurando verificar em que medida as formas linguísticas presentes nos textos contribuem para a (en)formação de valores metafóricos do elemento água e em que medida são o alicerce de um constructo simbólico.

PALABRAS-CLAVE: Romanceiro, Água, Símbolos da Água, Campo Lexical, Tradição Oral Moderna Portuguesa

ABSTRACT: The water element has a symbolic, ancestral value in all cultures, and it is possible to trace, throughout human history, the importance that water had and still has for different cultures and the symbolic values that have been attributed to it. From an object of worship to a symbol of life, water is also associated with different cultural practices. To this extent, we find references to water in literature or painting and we find that, in these expressions, the symbolic values that each community attributes to the water element are evidenced. Thus, based on the importance and symbolic values of the water element in different cultures, in different cultural practices and in different expressions, we revisit the symbolic constructs associated with the water element in literature, particularly in an oral genre: Spanish Ballads. In a very particular way, we intend to analyze the linguistic options of the lexical field of water in romanceiro of the modern Iberian oral tradition, trying to verify to what extent the linguistic forms present in the texts contribute to the incorporation of metaphorical values of the water element and in what measure those are the underpinning of a symbolic construct.

KEYWORDS: Spanish Ballads, Water, Symbols of the Water, Lexical Field, Portuguese Modern Oral Tradition

1. INTRODUÇÃO

A cultura ibérica é, indiscutivelmente, subsidiária dos encontros civilizacionais que tiveram lugar ao longo de milénios no espaço geográfico da Península e fora dela. Com certa facilidade identificamos na Península Ibérica, ao nível do património edificado e ao nível das manifestações culturais consideradas património imaterial, elementos decorrentes dos encontros civilizacionais. Pensemos na evolução da planta habitacional entre o período pré-romano e após a chegada dos romanos à Península Ibérica; pensemos no estilo arquitetónico de arte mudéjar ou no estilo arquitetónico renascentista1.

Embora este não seja o espaço nem o tempo para rever com minudência as interseções culturais decorrentes de encontros civilizacionais, recordemos a título de exemplo como as manifestações culturais de celebração do Carnaval sincretizam rituais de iniciação dos jovens ou de ciclos agrícolas (Espírito Santo, 1988; González-Matellán, 2020; Sainero, 2007). Relembremos como as manifestações musicais sincretizam instrumentos e ritmos de proveniência e função diversa (Morais, 2016). Recordemos, ainda, como as religiões monoteístas sincretizam rituais e vivências religiosas ancestrais do território dos diferentes povos que atualmente as professam (Blázquez, 1994; Busto Cortina, 2020; Cao e Gòdia, 2020; Espírito Santo, 2005; Patrocínio, 2005).

Neste trabalho, focamos a nossa atenção no elemento água, um dos elementos naturais (a par com o ar, a terra e o fogo) transversal a diferentes tempos e culturas. Com efeito, o elemento água possui em todas as culturas um valor simbólico, ancestral, sendo possível rastrear, ao longo de distintos períodos da história da humanidade, a importância que a água teve e tem para as diferentes culturas e os valores simbólicos que lhe foram sendo atribuídos. De objeto de culto a símbolo de vida, a água surge também associada a diferentes práticas e manifestações culturais (religiosas, literárias, artísticas). Por conseguinte, o estudo da imagística ligada a este elemento natural é fulcral para a compreensão da história cultural da humanidade.

Tendo por base a importância e os valores simbólicos do elemento água em diferentes culturas, em diferentes práticas culturais e em diferentes expressões, revisitamos aqui os constructos simbólicos associados a este elemento na literatura tradicional, muito particularmente no romanceiro tradicional.

Assim, analisaremos as opções linguísticas do campo lexical água em romances da tradição oral moderna portuguesa e procuraremos verificar em que medida estas formas linguísticas presentes nos textos contribuem para a (en)formação de valores metafóricos do elemento água e para a construção da linguagem poética. Por outras palavras, procuraremos perscrutar em que medida as ocorrências do campo lexical água alicerçam um constructo simbólico surgido antes do texto e relacionável com as vivências do Homem.

2. DA IMAGÍSTICA DA ÁGUA NA CULTURA POPULAR

O surgimento da humanidade e o da religião parecem coevos e indissociáveis. Nesta medida, o culto à água (ou o culto junto de águas), a par do culto aos mortos, é um dos cultos ancestrais da civilização humana e encontramo-lo em todas as religiões das antigas civilizações de Oriente a Ocidente e de Norte a Sul do globo, sendo possível encontrar o elemento água carregado de simbologia em todas as cosmogonias (Martos Núñez e Martos García, 2011; Morena López, 2018). Na bacia mediterrânica, é inclusive possível identificar as similitudes entre as diferentes divindades cultuadas por cada civilização, desde a Mesopotâmia ao Egipto2.

A partir dos achados arqueológicos e dos teónimos documentados pela tradição romana, os estudiosos têm concluído que os povos pré-romanos ibéricos prestavam já culto a númenes de fontes, de águas medicinais/termais, de rios e do mar3. Com efeito, a propósito do estudo de santuários ibéricos descobertos juntos de fontes ou de arroios, Blázquez e García-Gelabert (1997) concluem que para a religião ibérica, do mesmo modo que para outras religiões, as águas possuem um papel importante, funcionando simultaneamente como um meio terapêutico e mágico. As similitudes encontradas por diferentes autores entre as divindades cultuadas na bacia mediterrânica sugerem que o culto à água dos povos pré-romanos pode ter sido influenciado pelos contactos comerciais estabelecidos entre Fenícios e gentes da Ibéria. Sainero (2007) vai mais além e defende, com base nos estudos históricos, linguísticos e literários que tem vindo a desenvolver e com base nas conclusões da investigação genética de Brian Sykes (2006), que as práticas religiosas dos povos pré-romanos da Ibéria advêm de um fundo semita, muito mais arcaico do que até ao momento se supunha, chegado à Península Ibérica graças a fluxos migratórios anteriores aos das trocas comerciais.

Muito embora não se possa identificar o momento exato em que a relação do Homem com a água se efetiva, parece irrefutável que, dessa relação, nasce e se desenvolve uma carga simbólica, positiva e negativa, que ainda hoje se conserva sobretudo em práticas religiosas e no espólio literário das diferentes civilizações (González Gruesso, 2007; Morales Sánchez et al., 2016). Ao longo dos tempos, a água torna-se símbolo de fertilidade, de purificação, de vida, de princípio e origem de todas as coisas, de cura (González Gruesso, 2007; Morena López, 2018). A água torna-se o obstáculo que separa o mundo dos vivos e o dos mortos e o rio adquire, na mitologia greco-latina, o valor simbólico de ponte de passagem entre ambos os mundos, acessível apenas mediante pagamento. A água surge, ainda, como elemento negativo quando interligada a tormentas e tempestades (González Gruesso, 2007; Pedrosa, 2000) ou como elemento castigador (Val Valdivieso, 2015). Dada a sua importância para as comunidades, muito cedo, a água, nas suas diferentes formas, se transformou num recurso estilístico, simbólico e recorrente na literatura. Pensemos, por exemplo, nas cantigas de amigo de Martim Codax nas quais a relação da personagem feminina com a água é um recurso estilístico; pensemos na lírica camoniana ou pessoana nas quais há uma forte presença do elemento água. Também presente nos géneros da literatura de cariz oral, o elemento água sobrevive como motivo e mantém-se como recurso estilístico fundamental para as relações dialógicas textuais.

A importância da água na literatura, enquanto mitopoiesis, tem sido evidenciada por diferentes estudiosos para diferentes tipologias de texto, em diferentes épocas e em diferentes culturas4. Os valores simbólicos do elemento água têm, também, vindo a ser evidenciados em diversos géneros da literatura tradicional, sobretudo no conto tradicional e na lenda5. Para o género romancístico, os estudos que analisam a importância estilística da água têm-se centrado na relação que esta estabelece com os rituais populares de celebração da noite de São João, a 24 de junho (Caro Baroja, 1979; Díaz González, 1981; Martos Núñez e Martos García, 2012). Não obstante, cremos ser de salientar outros trabalhos que, de forma mais ou menos aprofundada, têm procurado trazer ao debate a importância estilística do elemento água e de formas como fonte, mar ou onda. Nesta sequência, Díaz Ovando (1944) ressalta valores simbólicos da água veiculados em diversos romances não apenas tradicionais. Segundo a autora, decorrentes da tradição judaico-cristã serão os significados de água como fonte de vida, como elemento de cristianização ou como elemento nutrício. Morão (2011), a propósito da análise de versões do romance Delgadinha (IGR 0075), destaca a presença de elementos sobrenaturais e reitera os valores metafóricos da água: «a água que tais seres lhe trazem terá o sentido metafórico cristão da água da vida eterna, o mesmo que é desempenhado pela “fonte sagrada”» (Morão, 2011: 192).

3. O CAMPO LEXICAL DA ÁGUA NO ROMANCEIRO DA TRADIÇÃO ORAL MODERNA PORTUGUESA

Os dados que elencamos neste ponto dizem respeito a um conjunto de romances da tradição oral moderna portuguesa editados entre 1828 e 19606 e são retirados de Pires (2007, vol. 2).

O campo lexical da água surge veiculado nas seguintes opções linguísticas7:

Possuindo a língua portuguesa um leque variado de formas linguísticas do campo lexical da água, parece-nos, desde já, de evidenciar que, no corpus estudado por Pires (2007), não existam outras formas de água como bica, chafariz, fontanário, lagoa, manancial, mina, nascente, olho-de-água, regato, ria ou riacho.

Do ponto de vista estatístico, salienta-se o número de ocorrências das formas água, mar e fonte, juntamente com o número de ocorrências das formas rio, onda e do par ribeiro/ribeira. Dos dados publicados por Pires (2007, vol.2: 695-703), sobressai o facto de o lema água ocorrer entre os dez lemas mais frequentes em todo o corpus12.

Examinados com acuidade os contextos de ocorrência das formas elencadas no Quadro I, verificamos que o lema fonte surge sempre associado ao elemento água e que o lema rio ocorre quase exclusivamente associado ao elemento água, podendo surgir interrelacionado com os lemas sangue13, negro14. Destaca-se, no entanto, a ocorrência da forma rio na fórmula, metafórica, presente no romance Gerinaldo (IGR 0023), «– Venho de caçar a rola, daquelas bandas do rio» (Ferré, 2003: 424, v. 20), e a da forma fonte na fórmula, também ela metafórica, que encontramos no romance A Infantina (IGR 0164), «– Tornemos atrás, donzela, tornemos atrás, donzilha, / que na fonte aonde bebemos a minha espora é perdida» (Ferré, 2004: 70, vv. 11 e 12).

QUADRO I

SÍNTESE DOS DADOS RELATIVOS AOS LEMAS DO CAMPO LEXICAL ÁGUA PRESENTES NO CORPUS DE ROMANCES DA TRADIÇÃO ORAL MODERNA PORTUGUESA EDITADOS ENTRE 1828 E 1960 (PIRES, 2007)

água

996

poço

12

mar

524

regueiro/rigueiro8

5

fonte9

193

chuva

3

rio

70

maré

3

onda10

43

aguadeira

1

ribeira/ribeiro11

42

goteira

1

gota

27

lago

1

tanque

25

poça

1

Em todos os contextos em que aparece, a forma lemática onda surge interrelacionada unicamente com o lema mar e, por conseguinte, com um tipo de água em particular15. Por seu turno, nas versões dos romances A Batalha de Lepanto (IGR 0112), Tentação do Marinheiro (IGR 0180) ou Nau Catrineta (IGR 0457) as formas onda/ola e mar representam um espaço, ou melhor dizendo, um dos espaços primordiais, onde decorre a ação. A partir da análise dos versos, é notório que a forma linguística mar desempenha, além disso, um papel fundamental no desenvolvimento da intriga no romance Conde Ninho (IGR 0049), cujas versões da tradição oral moderna portuguesa apresentam um enigma/questionamento16, e no romance Bela Infanta (IGR 0113), uma vez que do mar vem o restabelecimento da ordem com a chegada do marinheiro/capitão.

As formas ribeiro/ribeira e regueiro/rigueira, muito embora os valores absolutos das suas ocorrências sejam baixos quando comparados com os dados das formas linguísticas água, mar e fonte, destacam-se no corpus. Primeiro, a observação dos contextos em que ocorrem ribeiro/ribeira e regueiro/rigueira evidencia a sua presença num verso formulístico, «encontrou três lavadeiras na ribeira a lavar»17, que serve a fábula de vários romances: Morte de D. Beltrão (IGR 0150), Conde Dirlos (IGR 0190), Nau Catrineta (IGR 0457), sendo determinante para o seu desenvolvimento. Estas formas linguísticas, ribeiro/ribeira e regueiro/rigueira, encontram-se em versões dos romances Santa Iria (IGR 0173)18, A Serrana (IGR 0233)19, A lavadeira (IGR 0417)20 e Bernardo e Valdevinos (IGR 0103)21, estando, ainda, presentes numa versão factícia do romance Morte de D. Beltrão (IGR 0150)22, numa versão do romance O Sacrifício de Isaac (IGR 0201)23; numa versão do romance Má Sogra (IGR 0153)24 e numa versão do romance Delgadinha (IGR 0075)25. Desde já, nos parece de ressaltar que no romance Má Sogra (IGR 0153) o lema ribeiro se interligue semanticamente ao lema sangue.

A forma poço ocorre em associação com a forma água, «poço de água», em versões do romance A Romeira e o Estudante (IGR 0456) e numa versão do romance Flérida (IGR 0431). As demais ocorrências deste lema surgem com diferentes referentes, embora todas eles relacionados com o elemento água26. No que se refere à forma tanque, constatamos que ocorre sempre na sua inter-relação com o elemento água. Por seu turno, o lema gota surge-nos em duas versões do romance Conde Alarcos (IGR 0503) em relação com o lema leite. Nas demais versões de romances em que ocorre, verificamos que ocorre sempre interligado ao lema água27, sobressaindo o facto de o maior número de ocorrências deste lema, gota, se verificarem nos romances Silvana (IGR 0005) e Delgadinha (IGR 0075).

Confrontando os dados estatísticos com os contextos de ocorrência das formas linguísticas elencadas, torna-se evidente a presença das formas fonte, tanque, rio, ribeiro no final de versões do romance Delgadinha (IGR 0075). Neste romance em particular, estas formas linguísticas surgem associadas a elementos sagrados e a milagres operados por entidades superiores. Vejam-se os exemplos, «e os pés de Deladina tinham uma fonte de água clara» (Ferré, 2003: 341, v. 27); «O primeiro que lá chegou achou-a amortalhada; / à cabeceira ela tinha um tanque de água clara» (Ferré, 2003: 344, vv. 32 e 33); «uma fonte à cabeceira que rios de água botava» (Ferré, 2003: 347, v. 35) ou «Aldininha não quer água, que a tem à cabeceira, / que lha trouxeram os anjos no cálice da vidraceira» (Ferré, 2003: 356, vv. 27 e 28).

Se bem que as formas linguísticas com maior número de ocorrência num corpus sejam essenciais para o estudo de paradigmas, as formas com menor número de ocorrência não podem ser rejeitadas. Nesta medida, consideramos relevantes os dados e os contextos de ocorrência relativos às formas com baixos valores presentes nos romances da tradição oral moderna portuguesa editados entre 1828 e 1960. Assim, a análise dos contextos de ocorrência do lema maré mostra-nos que em apenas um deles, quando ocorre numa versão do romance O Cativo (IGR 0443), este lema possui um valor semântico relacionado com o campo lexical da água: «e eu, sem esperar maré, numa barca navegada» (Ferré, 2000: 499, v. 59). Nos outros dois contextos em que ocorre, em duas versões do romance Conde Claros em Hábito de Frade (IGR 0159), a forma maré é parte integrante de uma expressão lexicalizada (boa maré) com valor semântico de sorte/contexto favorável/boa disposição: «se ele andar a passear, é boa maré de lhe falar» (Ferré, 2000: 309, v. 36); «Foi uma maré tão boa, que ele andava a passear» (Ferré, 2000: 358, v. 19). Por seu turno, analisados os contextos de ocorrência do lema chuva, imediatamente se comprova o facto de se encontrar exclusivamente em combinação com o lema vento28.

Indiscutivelmente, as formas hápax têm de ser analisadas a partir de cada um dos seus contextos de ocorrência. A forma aguadeira ocorre numa versão do romance A Infantina (IGR 0164): «Corrida menos duma hora, los passos de alguém sentia, / era mulata aguadeira que vinha à fonte fria; / se lhe tirassem la cor, com ser mulata, valia» (Ferré, 2004: 90-93, vv. 29 a 31). A forma lago encontra-se numa versão do romance A Condessa Traidora (IGR 0338): «– Quem quiser alvas pernas e o meu corpinho galhardo, / vá matar o conde velho que lá fica adormentado; / deixei-o limpo das armas, botara-lhas ao lago, / soltara-lhe o cavalo e botara-lho a andar» (Ferré: 2003: 213-214, vv. 6 a 9). A forma goteira ocorre numa versão do romance Conde Alarcos (IGR 0503): «mama, mama, meu menino, mama mais uma goteira, / que não achas neste mundo outra melhor criadeira» (Ferré, 2001: 388, vv. 37 e 38). Se bem que desprovida do seu contexto de ocorrência esta forma linguística (goteira) remeta para o campo lexical que aqui procuramos analisar, quando observada no contexto do verso, verificamos que o seu valor semântico não remete para água. Portanto, ainda que remeta para líquido, não pode ser considerada uma forma do campo lexical água. Por fim, o lema poça aparece numa versão do romance Claralinda (IGR 0234): «Pegara no seu punhal, metera-lho no coração, / sangue que dela corria, fazia poças no chão» (Ferré: 2003: 209, vv. 17 e 18). Neste caso e tal como no exemplo anterior (goteira), consideramos que, apesar de a forma poça remeter para o campo lexical de água quando desprovida de um contexto de ocorrência, o seu valor semântico nos versos citados obriga-nos a excluí-la do campo lexical que analisamos.

Do ponto de vista quantitativo, fica, pois, explícita a importância que o campo lexical água possui no corpus analisado. Impõe-se-nos, nesta sequência, procurar percecionar em que medida os dados relativos aos dados linguísticos, confrontados com os contextos de ocorrência de cada um dos lemas relativos ao campo lexical água, traduzem elementos metafóricos e/ou nos remetem para a preservação de constructos simbólicos ancestrais.

4. DO CAMPO LEXICAL À CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA

Como afirmam Martos Núñez e Martos García (2012: 10), «La comprensión del mundo de la cultura del agua exige una mirada metafórica que vaya más allá del sentido literal de estas historias de ninfas, fuentes y dragones, que trate de percibir el valor del agua en una cultura a través de ciertos procesos propios de la fabulación, como la personificación o totemización, esto es, a la identificación de la sacralidad o energía de las aguas con un ser o animal sobrenatural que se toma como emblema y origen de la comunidad misma». Acrescentamos nós, na literatura, e de modo especial no romanceiro, a compreensão da cultura da água exige a descodificação de metáforas que estão para lá do levantamento das opções linguísticas encontradas nos textos.

Chevalier e Gheerbrant (1982) enunciam um conjunto de elementos, descrevendo o seu uso simbólico por diferentes grupos civilizacionais. No seu elenco, incluem, entre inúmeros outros motivos, água, fonte, mar, onda, poço, rio como elementos carregados de simbologia para vários grupos civilizacionais. Segundo os autores, «les significations symboliques de l’eau peuvent se réduire à trois thèmes dominats: source de vie, moyen de purification, centre de régénerescence. Ces trois thèmes se rencontrent dans les traditions les plus anciennes et ils forment les combinaisons imaginaires les plus variées, en même temps que les plus cohérentes» (Chevalier e Gheerbrant, 1982: 373). Por seu turno, Ráez Padilla (2015) considera que os valores negativos do elemento água, plasmados na filosofia de Heraclito, são recuperados pelos textos patrísticos do primevo cristianismo e readquirem um novo sentido no auge da cultura medieval29.

Em relação ao romanceiro, Díaz Ovando (1944) evidenciara já a projeção dos quatro elementos naturais (terra, ar, fogo e água) em romances e outros textos líricos, salientando, no que toca à água, alguns valores simbólicos veiculados, decorrentes da tradição hebraica e islâmica: água como fonte de vida, água como elemento de cristianização, água como castigo e a fonte como elemento nutrício.

De facto, quando analisados os contextos de ocorrência das formas linguísticas enunciadas no ponto anterior, fica, imediatamente, patente a ambivalência simbólica, positiva e negativa, do campo lexical água no conjunto de romances analisado (romances da tradição oral moderna portuguesa editados entre 1828 e 1960).

Esta ambivalência de valores, simultaneamente positivos e negativos, encontramo-la, por exemplo, no uso das formas ribeiro/ribeira. O transcurso do tempo e as suas testemunhas, implícitos na fórmula que incorpora os termos ribeiro/ribeira e lavadeiras, contrastam com a hipérbole veiculada pela associação das formas ribeiro/ribeira ao lema sangue no romance Santa Iria (IGR 0173) ou na versão do romance Má Sogra (IGR 0153)30 e, ainda, com a atribuição de um valor sagrado aos elementos, referentes a água, presentes em versões do romance Delgadinha31.

Do levantamento dos contextos de ocorrência do lema onda, verificamos que da inter-relação estabelecida com o lema mar (e, por conseguinte, com água) nos diversos textos em que ocorre resulta a construção de uma conotação negativa. Se observarmos a sua ocorrência em versões do romance Floresvento (IGR 0343), Conde Alarcos (IGR 0503), Conde da Alemanha (IGR 0095) ou Noiva Abandonada (IGR 0720)32, tanto as ondas como o mar surgem claramente como metáfora de obliteração da memória. Em contrapartida, transformam-se em símbolos de destruição em romances como Nau Catrineta (IGR 0457), O Marinheiro e a Virgem Maria (IGR 0538) ou Alma Peregrina (IGR 0797). As ondas e o mar (ou o poço) simbolizam também o castigo, por exemplo no romance A Romeira e o Estudante (IGR 0456), no qual, simultaneamente, a dor infligida pela água e a morte da personagem feminina acabam por honrar a donzela e estabelecer o êxito do bem sobre o mal (do ponto de vista da ética cristã). O mar é simultaneamente imagem de vida e de morte, as ondas representam a passividade e o poço, no romance A Romeira e o Estudante (IGR 0456), o sincretismo das ordens cósmicas céu, terra e inferno, tal como lembram Chevalier e Gheerbrant (2015). De igual modo, verificamos uma conotação negativa para o lema rio, em particular quando associado aos lemas sangue ou negro: «Os rios que temos passado cobertos de sangue vão» (Ferré, 2001: 274, v. 37); «o sangue, que deles corria, ia em rios para o mar» (Ferré, 2003: 234, v. 28). O lago onde a condessa deixa as armas do marido possui um valor negativo e representa o mal por ela perpetrado33. O lema chuva, enquanto elemento climatérico e associado ao vento, marca momentos de adversidade para as personagens, mas que de uma forma ou de outra serão ultrapassados. Por exemplo, no romance Bela Infanta (IGR 0113) o «dia de chuva e vento» marca a tristeza do momento da despedida do navegante, recordada agora (no momento da enunciação) que se reencontra com a esposa; no romance Noiva Abandonada (IGR 0720) a expressão «dava-lhe o vento e a chuva» conota as provações ao amor que sai vencedor frente a todas as adversidades; no romance Donzela Guerreira (IGR 0231) o verso em que ocorrem os lemas «vento e chuva» poderá interpretar-se como referência às dificuldades trazidas pelo transcurso do tempo que se transformam em sabedoria. Desta forma, parece-nos que a co-ocorrência dos lemas chuva e vento no corpus carrega um valor negativo que se transforma em positivo no decurso da fábula.

Não obstante o que fica dito, os lemas rio e mar também nos surgem no corpus com valor simbólico de fronteira entre o bem e o mal. Por exemplo, no romance Floresvento (IGR 0343) os elementos fonte, rio e ondas do mar, marcam os limites e informam da passagem da cruel personagem34. Por exemplo, no romance As Irmãs Rainha e Cativa (IGR 0136) ou Esposa de D. Garcia (IGR 0183) a travessia do rio e do mar numa barca representa a libertação do cativeiro e, portanto, o triunfo do bem sobre o mal35. Mas o mar é, sem dúvida, um elemento simbólico positivo no romance Bela Infanta (IGR 0113): o mar permite repor a normalidade ao trazer o marido a casa, restabelecendo-se, deste modo, a união familiar perdida.

Comparados os diferentes contextos de ocorrência das formas linguísticas, constatamos que as formas rio, fonte e água assumem maioritariamente no corpus estudado valores positivos relacionados com a vida, a pureza e o sagrado. A lavadeira que lava no rio, no tanque ou na fonte assegura um ritual de purificação; a água que brota dos pés ou da cabeceira das personagens mortas certifica uma recompensa e atribui-lhes um papel exemplar; as fontes e os tanques onde as personagens se lavam garantem a renovação e onde as personagens bebem avalizam a sua edificação moral. Assim, salienta-se o facto de os lemas fonte, rio, tanque assumirem, entre outros, um valor sagrado no romanceiro. Nos romances Silvana (IGR 0005), Delgadinha (IGR 0075) A Fonte Clara (IGR 0104)36 ou A Pastora Devota do seu Rosário (IGR 0212)37 os lemas fonte e água encontram-se intimamente ligados ao sagrado e carregam uma simbologia de transformação na qual intervém sempre o milagre divino.

Por fim, parece-nos evidente que o campo lexical da água, em particular as formas água, rio, mar e por extensão o nadar, enquanto provas, transformam-se em elementos de revelação no romance Donzela Guerreira (IGR 0231). No momento em que a donzela encontra um subterfúgio que lhe permite não aceitar o convite, dá-se a revelação da sua identidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados quantitativos relativos aos romances da tradição oral moderna portuguesa acima expostos permitem-nos reencontrar os valores simbólicos enumerados pelos diferentes autores e, simultaneamente, acrescentá-los. Dos dados apresentados e da proposta de interpretação, cremos que fica patente a importância do campo lexical da água para o romanceiro.

Do nosso ponto de vista, o estudo deste campo lexical e dos seus símbolos, enquanto código percebido pelos usuários, é crucial para a compreensão e análise do género romancístico, não só por causa do seu valor estilístico, como também porque é um elemento essencial no constructo de uma linguagem poética validada pelo imaginário coletivo.

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Fecha de recepción: 18 de abril de 2022
Fecha de aceptación: 15 de junio de 2022

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1 Ao nível do património edificado, um dos expoentes máximos do sincretismo cultural poderá ser a Catedral de Córdova, no sul da Península Ibérica.

2 Sobre este tema existe uma vasta bibliografia. Sugerimos a consulta de, por exemplo, Blázquez (1994); Espírito Santo (1988 e 2005); Guirand (1996); Moneo (2003) ou Morena López (2018).

3 Sobre este tema existe uma vasta bibliografia. Tendo em conta que este não é o foco deste estudo, sugerimos a consulta de, por exemplo, Curchin (1991); Blázquez e García-Gelabert (1997) ou Olmos (1992).

4 Tendo em conta o volume de estudos dados à estampa sobre esta temática, seria impossível revê-los neste espaço. Recordemos, para a cultura ibérica, os trabalhos de Deyermond (1971), de Frenk (1990) ou de Pelaz Flores (2015).

5 Também neste campo foram dados à estampa uma multiplicidade de trabalhos. Salientamos, a título de exemplo, os trabalhos de Chevalier (1990), de Pedrosa (2000) ou de Martos Núñez e Martos García (2011).

6 Os romances que nos servem de base a este estudo, editados entre 1828 e 1960, foram reeditados por Pere Ferré em 4 volumes (Ferré, 2000; 2001; 2003 e 2004).

7 Estão incluídas nas formas lematizadas apresentadas as diferentes variantes em número possíveis na língua portuguesa e também as formas em castelhano, mirandês ou galego surgidas nos textos provenientes da raia fronteiriça.

8 Optamos por juntar a forma dialetal encontrada no corpus à forma dicionarizada da palavra. Assim, regueiro ocorre 4 vezes no corpus e rigueiro 1 vez.

9 Consideramos aqui o cômputo das formas da língua portuguesa e da língua castelhana porquanto referem o mesmo elemento.

10 Consideramos aqui o cômputo das formas da língua portuguesa e da língua castelhana porquanto referem o mesmo elemento.

11 Ao longo do corpus estudado por Pires (2007), ribeira ocorre 27 vezes e ribeiro 15 vezes. Optamos pelo par ribeiro/ribeira e não por tratar separadamente ambas as palavras porquanto estes dois termos possuem um uso diferente entre o norte e o sul do país, remetendo sempre, em qualquer dos usos, para uma diferença de caudal do curso de água.

12 Por ordem decrescente de número de ocorrências, surgem as formas filho, pai, dom, senhor, conde, mãe, cavalo, menino, mulher, água (Pires, 2007, vol.2).

13 Por exemplo, num verso do romance Má sogra (IGR 0153): «Os rios que temos passado cobertos de sangue vão» (Ferré, 2001: 274, v. 37).

14 Por exemplo, em versões do romance Alma Peregrina (IGR 0797): «vou para passar o rio negro, vou para o passar e não via» (Ferré, 2004: 404, v. 5).

15 Vejam-se as ocorrências do lema onda nos seguintes exemplos que não são exaustivos: no romance Floresvento (IGR 0343), «– Vai-te embora, Cruelvento, lá para essas ondas do mar» (Ferré, 2000: 386, v. 8); no romance Conde Ninho (IGR 0049), «um voou, outro voou, para além das ondas do mar» (Ferré, 2001: 164, v. 14); no romance Conde Alarcos (IGR 0503), «– Manda-me levar ao mar, as ondas me levariam» (Ferré, 2001: 425, v. 23); no romance Bernal Francês (IGR 0222), «as ondas do mar o levem que ele não torne cá a vir» (Ferré, 2003: 132, v. 15); no romance A Romeira e o Estudante (IGR 0456), «foi-se botar ao mar largo donde as ondas a cobria» (Ferré, 2003: 322, v. 15); ou no romance Alma Peregrina (IGR 0797), «Indo lá por meio da noite, cai o navio à onda» (Ferré, 2004: 402, v. 3).

16 Todas as versões editadas entre 1828 e 1960 apresentam os seguintes versos: «Ou são os anjos no céu, ou a sereia no mar. / - Não são os anjos no céu, nem a sereia no mar» (Ferré, 2001: 149-173).

17 Recordamos que as fórmulas apresentam variação lexical que, na realidade, não altera o seu valor semântico.

18 «– Perdoa-me, Helena, meu amor primeiro, / jejuo-te um ano, um ano inteiro, / pastando ervinhas naquele lameiro / e bebendo água daquele ribeiro» (Ferré, 2004: 279, vv. 24 a 27); « – Como te hei-de perdoar, cruel carniceiro, / se tu fizeste do meu pescoço um ribeiro?» (Ferré, 2004: 301, vv. 30 e 31); «Do sangue real fizeste uma ribeira» (Ferré, 2004: 310, v. 17).

19 «viu andar um pastorinho com o gado numa ribeira» (Ferré, 2003: 250, v. 5) ou «quando quer tomar amores, baixa-se àquela ribeira» (Ferré, 2003: 251, v. 3).

20 «Ela lababa-a na ribeira e ia enxugar à serra» (Ferré, 2001: 331, v. 2).

21 «Bem se passeia Bernardo pela ribeira de Hungria» (Ferré, 2000: 193, v. 1).

22 Salienta-se que na versão factícia do romance o verso formulístico não ocorre. Em vez dele, encontramos a forma ribeira noutro contexto e com outro valor semântico: «por esta ribeira fora ninguém não no viu passar» (Ferré, 2000: 211, v. 18).

23 «Manda-te o Senhor que vás àquela ribeira / que lá está um cordeirinho» (Ferré, 2000: 417, vv. 34 e 35).

24 «do meu corpo fizeste um madeiro, / e do meu sangue um ribeiro» (Ferré, 2001: 294, vv. 40 e 41).

25 «Silvana já estava morta, dos anjos alumiada, / debaixo dela corria um ribeiro de água clara» (Ferré, 2003: 377, vv. 46 e 47).

26 Por exemplo, numa versão do romance Bela Infanta (IGR 0113), «– O homem que me pede um beijo devia ser arrastado, / de roda do meu poço, ao rabo do meu cavalo» (Ferré, 2001: 68, vv. 18 e 19); numa versão do romance Donzela Guerreira (IGR 0231): «– Se ela for mulher fêmea, leva-a a um poço a nadar» (Ferré, 2004: 133, v. 24); em duas versões do romance Conde da Alemanha (IGR 0095): «venha ver, ó minha mãe, à janelinha do poço» (Ferré, 2003: 25, v. 28).

27 Por exemplo, numa versão do romance Frei João (IGR 0167), «se amassasse pão-de-ló, que nem água deitava; / se amassasse de outro, uma gotinha bastava» (Ferré, 2003: 98, vv. 8 e 9); em versões do romance Silvana (IGR 0005), «dai-me uma gotinha de água, que me quero expedir minha alma» (Ferré, 2003: 335, v. 22); ou em versões do romance Delgadinha (IGR 0075), «– Ó mamã, que Deus me deu, dê-me uma gotinha de água» (Ferré, 2003: 407, v. 11).

28 Vejam-se os versos de uma versão do romance Bela Infanta (IGR 0113), «A senhora não está lembrada dum dia de chuva e vento, / que eu a tive nos meus braços a poder de tanto tempo?» (Ferré, 2001: 111, vv. 30 e 31); de uma versão do romance Noiva Abandonada (IGR 0720), «num nasceu um lírio roxo, noutro um fresco rosal, / dava-lhe o vento e a chuva, ainda se iam abraçar» (Ferré, 2001: 239, vv. 28 e 29); e numa versão do romance Donzela Guerreira (IGR 0231), «– Tendes as mãos mui mimosas, filha, conhecer-vos-ão. / – Lá virá vento e chuva, que elas se calejarão» (Ferré, 2004: 165, vv. 12 e 13).

29 Ráez Padilla (2015) considera que a partir do Renascimento o elemento água volta a adquirir os valores positivos que tivera antes da filosofia heraclitiana e dos tratados patrísticos do início do medievo.

30 A ocorrência da forma poça associada ao lema sangue, acima referida, é também um recurso hiperbólico.

31 «Silvana já estava morta, dos anjos alumiada, / debaixo dela corria um ribeiro de água clara» (Ferré, 2003: 377, vv. 46 e 47).

32 Atente-se no verso frequente em diversas versões do romance: «–Agarra-lhe pelos cabelos e vai deitá-la ao mar!» (Ferré, 2001: 242, v. 24).

33 Vejam-se os seguintes versos de uma versão do romance Condessa Traidora (IGR 0338) «– Quem quiser alvas pernas e o meu corpinho galhardo, / vá matar o conde velho que lá fica adormentado; / deixei-o limpo das armas, botara-lhas ao lago, / soltara-lhe o cavalo e botara-lho a andar» (Ferré: 2003: 213-214, vv. 6 a 9).

34 Vejam-se os seguintes versos: «Vai-te embora, cruel vento, lá para as ondinhas do mar. / Os rios onde tu passares, logo se hão-de turbar; / a fonte onde beberes, logo se há-de secar» (Ferré, 2000: 338, vv. 5 a 7)

35 Vejam-se os versos: «chegando à borda do rio o mouro as avistaria. / - Deita a barca, barqueiro, grande prémio te eu daria. / - Dá-me la barca, barqueiro, dá-me-la por tua vida. / Vale mais salvar quatro almas do que tudo o que o mouro tinha» (Ferré, 2000: 459, vv. 35 a 38); «Passara-os um a um, para outro lado do rio, / com esta niña rio abaixo, os mourinhos rio acima.» (Ferré, 2003: 266, vv. 35 e 36).

36 «Jesus Cristo se passeia ao redor da fonte clara. / - Esta água ficou benta e a fonte fica sagrada; / ditosa da donzela que à fonte for buscar água.» (Ferré, 2004: 219, vv. 2 a 4).

37 «Tocaram os sinos do céu, todos com muita alegria, / de sair um corpo santo da fonte de água fria» (Ferré, 2004: 351, vv. 25 e 26)