Romances Cripto-Judaicos Portugueses

Crypto-Jewish Ballads in the Portuguese Oral Tradidition

Manuel da COSTA FONTES*

(Kent State University)

mfontes@kent.edu

https://orcid.org0000-0002-4013-6135

A ISRAEL J. KATZ

In memoriam

RESUMO: Existem cinco romances bíblicos entre cripto-judeus portugueses. Embora 1. O Sacrifício de Isaac (á-o) seja corrente em Espanha e entre os sefarditas de Marrocos, é exclusivamente cripto-judaico em Portugal, e incorpora elementos extra-bíblicos derivados do Midrash. O carácter estrófico de 2. Jonas e 3. Daniel na Cova dos Leões sugere proximidade com a literatura de cordel, a qual é mais moderna, mas há razões para pensar que talvez sejam bastante antigos. 4. A Passagem do Mar Vermelho (á-o) só sobrevive entre os sefarditas do Mediterrâneo Oriental. Embora baseado no Livro do Êxodo, também inclui pormenores folclóricos em comum com o Midrash. 5. A Pedra Mara (á-a) só existe em Portugal, e condensa dois episódios sobre a falta de água durante a peregrinação do povo judeu através do deserto. A «pedra» recorda a água que Moisés faz brotar dum rochedo em Horeb, e Mara refere-se às águas amargas que o profeta transforma em potáveis no lugar do mesmo nome. O último poema cripto-judaico, 6. No Céu Está um Castelo (í-a), descristianiza um romance cristão.

PALAVRAS-CHAVE: Romanceiro Bíblico, Criptojudeus Portugueses

ABSTRACT: Portuguese crypto-Jews preserve five biblical ballads. Although 1. O Sacrifício de Isaac (á-o) is current in Spain and among Moroccan Sephardim, it is exclusively crypto-Jewish in Portugal, and incorporates extra-biblical elements derived from the Midrash. The strophic character of 2. Jonas and 3. Daniel na Cova dos Leões suggests proximity to more modern broadsides, but there are reasons to think that they may go far back in time. 4. A Passagem do Mar Vermelho (á-o) survives only among the Sephardim of the Eastern Mediterranean. Although based on the Book of Exodus, the ballad also includes folkloric details in common with the Midrash. 5. A Pedra Mara (á-a) exists only in Portugal, and condenses two episodes about the lack of water during the pilgrimage of the Jewish People in the desert. The «pedra» recalls the water that Moses causes to flow from a rock in Horeb, and Mara refers to the bitter waters that the prophet makes drinkable in a place with the same name. The last crypto-Jewish poem, 6. No Céu Está um Castelo (í-a), dechristianizes a Christian ballad.

KEYWORDS: Biblical Folk Ballads, Portuguese Crypto-Jews

Em finais do século XV, havia cerca de 30.000 judeus em Portugal (Tavares, 1982: 74). Este número duplicou durante o reinado de D. João II, em 1492, quando milhares de judeus espanhóis expulsos pelos Reis Católicos procuraram refúgio no país1. Muitos dirigiram-se às cidades, mas outros ficaram em pequenas aldeias, perto da fronteira por onde tinham entrado.

Devido à sua ambição de produzir um herdeiro que unisse a Península Ibérica num único reino com a capital em Lisboa, o próximo rei, D. Manuel I (1495-1521), decidiu casar-se com Isabel, filha dos Reis Católicos. Com o encorajamento dos pais, a princesa declarou que não queria viver num país cheio de «hereges», e D. Manuel viu-se obrigado a decretar a expulsão de todos os judeus e muçulmanos que se recusassem a ser baptizados, dando-lhes até 31 de Outubro de 1497 para sair do país. Contudo, como D. Manuel não queria perder os judeus, os quais representavam um sector muito produtivo da população, a expulsão foi uma farsa. Quando uns 20.000 dos 60.000 judeus que havia em Portugal se juntaram em Lisboa, no Rossio, a fim de embarcar nos navios que supostamente os esperavam, todos menos oito foram baptizados à força2. Foi assim que nasceu o cripto-judaísmo em Portugal. Embora o país fosse declarado completamente cristão, era impossível que as vítimas aceitassem de um momento para o outro uma fé que lhes tinha sido imposta de uma maneira tão cruel e tão pouco cristã.

Embora tratassem de se comportar publicamente como cristãos, conservando a fé dos seus antepassados secretamente, na intimidade dos seus próprios lares, o povo sabia perfeitamente bem quem eles eram, chamando-lhes «conversos”, «Cristãos-Novos” e, mais pejorativamente, «marranos», equiparando-os assim ao animal cuja carne lhes era proibida e que eles tanto detestavam3.

Com o tempo, alguns judeus portugueses conseguiram escapar, fundando comunidades em Amsterdão, Londres, Bordéus, Itália, Norte de África, Império Otomano e noutros lugares (Azevedo, 1989: 359-430), mas a vasta maioria permaneceu em Portugal. Com a esperança de que se tornassem eventualmente cristãos, D. Manuel proibiu em Maio de 1497, cinco meses antes da chamada «expulsão», todos os inquéritos relativos ao seu procedimento religioso durante vinte anos, um período de graça que o rei depois prorrogou até 1534 (Herculano, 1982, I: 77-91).

Ao contrário de Espanha, onde a Inquisição tinha sido estabelecida em 1480, vários anos antes da expulsão de 1492, D. Manuel (falecido em 1521) não autorizou que esta fosse implantada em Portugal. A Inquisição portuguesa, criada em 1536, só começou a funcionar em 1540, no reinado do seu sucessor, D. João III (1521-1557). Alexandre Herculano e outros historiadores atribuíram a sua criação à piedade e ignorância do rei, mas é mais provável que D. João se visse obrigado a ceder ao anti-semitismo do povo. Como indica Maria José Pimenta Ferro Tavares, «o Santo Ofício foi “desejado” pela grande maioria da população cristã-velha» (Tavares, 1987: 126).

Depois de 1540, os convertidos viviam em constante medo. A menor suspeita era motivo suficiente para uma denúncia anónima ao Santo Ofício. As pessoas vigiavam os seus vizinhos Cristãos-Novos para ver se evitavam carne de porco, refeições preparadas com gordura, peixes sem escama e outros produtos alimentícios. Se o fizessem, arriscavam-se a ser denunciados. Também era perigoso trocar de roupa ou evitar o trabalho ao sábado. Milhares de pessoas acusadas de praticar o cripto-judaísmo, muitas delas inocentes, sofreram anos e anos nas prisões da Inquisição. O reinado de terror durou até à década de 1740, quando as reformas do Marquês de Pombal começaram a privar aquela instituição do seu poder4. Em 1773, Pombal aboliu todas as distinções legais entre Cristãos-Velhos e Cristãos-Novos, pondo fim à barreira invisível que os separava, mas a Inquisição só foi oficialmente abolida em Abril de 1821.

Com o passar dos anos, a grande maioria dos Cristãos-Novos que permaneceram em Portugal foi assimilada, mas em 1925 um engenheiro de minas polaco, Samuel Schwarz, deu a saber que ainda havia cripto-judeus no país. Tinha começado a investigar a sua existência graças a um homem de negócios que, desconhecendo a sua etnia hebraica, o tinha avisado que evitasse um rival porque ele era judeu. Ao princípio, Schwarz encontrou grandes dificuldades porque, em tempos inquisitoriais, o medo de denúncias era tanto que o segredo se tinha eventualmente tornado parte integral do cripto-judaísmo. Tal como os cripto-católicos do Japão, segundo os quais um verdadeiro cristão não pode praticar ou admitir a sua fé publicamente («Japan’s Crypto-Christians», 1982: 71), os cripto-judeus acabaram por acreditar que um verdadeiro judeu só podia praticar a sua fé secretamente. Como pensavam que só eles é que eram os verdadeiros judeus, não acreditavam que Schwarz também fosse. Nem sabiam da existência da língua hebraica. Foi só quando uma velhota de Belmonte que estava com outras lhe pediu que dissesse uma oração nessa língua e Schwarz recitou a «Shemah Israel», que pode dizer-se equivalente ao credo cristão, que acabaram por aceitá-lo: «É realmente judeu, porque pronunciou o nome de Adonai!»5. Isto fez com que Schwarz pudesse começar a sua investigação, recolhendo um bom número de orações e outros materiais de origem cripto-judaica.

Por volta de 1961, o capitão Artur Carlos de Barros Basto, que além de se converter à fé dos seus antepassados tentou restabelecer o judaísmo no país6, calculava que ainda havia de 4.000 a 5.000 cripto-judeus em algumas áreas fronteiriças de Trás-os-Montes, Beira Alta e Beira Baixa (Friedenberg, 1961: 90) —isto é, mais ou menos nas mesmas cidades e aldeias onde um grande número de refugiados espanhóis se estabeleceu em 14927.

Apesar do sigilo dos cripto-judeus, os seus vizinhos sabiam perfeitamente bem quem eles eram, que não trabalhavam aos sábados e que celebravam festas como o Yom Kippur («Dia Puro» ou «Dia do Perdão») e a Páscoa8. A sua liturgia não parece estar directamente relacionada com o judaísmo dominante (a Inquisição proibia livros em hebreu), consistindo em orações e romances que foram transmitidos oralmente de geração para geração. Contudo, algumas famílias guardam zelosamente manuscritos de orações que parecem datar do século XVIII9.

O número de orações é relativamente elevado10, e várias estão reservadas para ocasiões específicas. É possível demonstrar que algumas são variantes de orações que datam pelo menos dos séculos XVI, XVII e início do século XVIII, uma vez que os inquisidores registavam tudo com grande detalhe, incluindo as orações de suas vítimas11. Ao passo que 31 romances bíblicos foram recolhidos entre os sefarditas12, descendentes dos judeus espanhóis e portugueses expulsos em 1492 e 1497, respectivamente, existem apenas seis entre os cripto-judeus: 1. O Sacrifício de Isaac (á-o); 2. Jonas (estróf.); 3. Daniel na Cova dos Leões (estróf.); 4. A Passagem do Mar Vermelho (á-o); e 5. A Pedra Mara (á-a). Como faziam parte da sua liturgia, também eram considerados orações. O último poema, 6. No Céu Está um Castelo (í-a), adapta um romance cristão.

*

Embora O Sacrifício de Isaac (á-o + estróf.) seja corrente em Espanha e entre os sefarditas de Marrocos13, é exclusivamente cripto-judaico em Portugal. Foi recolhido em Belmonte, Rebordelo e em Carção14. A versão que segue, publicada por Samuel Schwarz em 1925, é provavelmente de Belmonte:

1. O Sacrifício de Isaac (á-o + estróf.)

Pela jura que juraste

ao nosso pai Abraão,

mandamentos que fizeste

nos campos de Morião.

5          Depois das palavras ditas

partiu Abraão pelos montes

onde o Senhor o mandava.

Mandou aos seus mancebos:

Mancebos, ficai aqui,

10        que eu e o moço iremos,

a vós tornaremos.

Disse Isaac lá no campo:

—Senhor pai, está aqui o fogo

e a lenha para acender;

15        mas onde está a vítima?

—Olhai vós, meu filho,

isso não vos dê cuidado,

que manda o Senhor

que sejais sacrificado.

20        —Se o Senhor manda e ordena,

cumpra-se o seu santo mandado;

quem morre pelo Senhor

no céu é coroado.

Peai-me de pés e mãos

25        para que, na hora da minha morte,

não faça algum desavisado,

não erga os olhos contra o Senhor

nem contra vós, meu pai, irado.

Tapou Abraão os olhos a seu filho Isaac

30        e ergueu a mão para dar o golpe.

Neste tempo veio um anjo:

—Tate, Abraão,

velho honrado.

Está o Senhor satisfeito

35        e de ti já está pago.

Manda-te o Senhor

que vás àquela silveirinha,

que lá está um cordeirinho

preso pela barbela,

40        e dele farás sacrifício ao Senhor.

Oh, benzer-te, benzerei,

aplicar-te, aplicarei.

Que as tuas sementes sejam tantas

como o mar de areias,

45        céu de estrelas,

árvores de folhas,

e sementes por todo o mundo.

Amén, Senhor15.

Como se pode ver, só os versos 16-28 e 32-35 mantêm a forma de romance, com rima em á-o, mas a métrica é variável, sem predomínio do requerido heptassílabo. Os versos 1-15, 29-31 e 36-40 são de carácter estrófico, e complementam o poema com material tomado da sua fonte original (Gén. 22). Por outras palavras, o romance começou a ficar esquecido e, apesar de estar bem representado na tradição oral no país vizinho, o isolamento dos cripto-judeus era tão grande que não podiam completá-lo de outro modo. Os «campos de Morião» (v.4) correspondem à terra ou monte Moriah (Jerusalém) onde, segundo o Antigo Testamento, o sacrifício estava para ter lugar (Gén. 22.2). A oração final (41-47), que é exclusivamente cripto-judaica, deriva da parte bíblica na qual Deus premeia Abraão pela sua obediência: «abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar» (Gén. 22.17). Como as versões recolhidas se parecem muito entre si e todas, menos a do Abade do Baçal, terminam com a mesma oração16, é muito provável que, apesar de transmitido oralmente, o romance tenha sido fortemente influenciado pela tradição manuscrita cripto-judaica que, como vimos, data do século XVIII17.

Em última análise, todas as versões modernas derivam de um poema jogralesco com rima consonante publicado em Espanha por volta de 1535 (Catalán, 1970: 64, notas 20-21), sendo subsequentemente reimpresso em 1550 (Rodríguez-Moñino, 1970: 292-293). O romance também existe, em forma abreviada, num manuscrito de 1683 descoberto na Holanda (Armistead e Silverman, 1980: 249-250). Embora baseado no Génesis 22, tanto as versões antigas como as modernas incorporam elementos extra-bíblicos derivados do Midrash (Ginzberg, 1967-1969), uma compilação que inclui um grande corpus de literatura oral judaica. Como era muito improvável que os cristãos estivessem familiarizados com essa tradição, não resta dúvida de que o romance foi originalmente composto por um judeu (Barugel, 1990).

Apesar de altamente condensada e muito esquecida, a versão portuguesa também retém três detalhes tomados do Midrash: 1) a resposta directa de Abrão a Isaac quando ele lhe pergunta onde está a vítima (Barugel, 1990: 49); 2) a transformação do rapaz num herói que, apesar de nem falar no relato bíblico, aceita agora o seu próprio sacrifício (Barugel, 1990: 50); e 3) a amarração de pés e mãos (Barugel, 1990: 72-73).

Embora mal lembrado, o romance português também é conservador, retendo duas passagens que se aproximam mais da versão antiga. Comparem-se os vv. 16-19 (— Olhai vós, meu filho, / isso não vos dê cuidado / que manda o Senhor / que sejais sacrificado) com os de 1535, quando Isaac pergunta onde está a vítima para o sacrifício, e Abrão responde: «Hijo, Dios proueera, / dixo no tengas cuidado» (vv. 33-34), explicando depois: «porque Dios manda y ordena / que seays sacrificado» (vv. 47-8) (Rodríguez-Moñino, 1970: 292). Como enfatiza Alberto Barugel, neste ponto «It is the Crypto-Jewish tradition from Portugal that remains closest to its predecessor» (Barugel, 1990: 147).

A segunda passagem arcaizante relaciona-se com uma referência à mãe do herói, Sara, a qual nem se menciona no relato bíblico. A sua presença na versão antiga depende do Midrash (Barugel, 1990: 147). Isaac pede ao pai para lhe dizer que não se aflija, porque «quien muere por su dios / en el cielo es coronado» (vv. 65-66) (Rodríguez-Moñino, 1970: 293). Temos uma variante do mesmo verso num manuscrito copiado em Amsterdão em 1683: «el que muere por Dios: / Enel Cielo Esta Coronado» (vv. 12-13) (Armistead e Silverman, 1980: 250). Como Sara não se encontra no romance português, os versos correspondentes, «quem morre pelo Senhor / no céu é coroado» (vv. 22-23) são utilizados para justificar a submissão de Isaac à vontade de Deus, constituindo a sua única sobrevivência na tradição oral moderna18.

2. Jonas (estróf.)

Jonas, desobediente

ao que o Senhor o mandou:

fosse pregar à Nívia,

onde Jonas desembarcou.

5          Indo na sua jornada,

felizmente navegava,

pensando que o não via

aquele que o condenava.

O vento vai favorável.

10        Um par de léguas andadas,

depara-se uma tormenta.

Disse Jonas aos pilotos:

—A tormenta vai armada,

as vidas vão arriscadas:

15        se quereis que ela passe,

mandai-me deitar ao mar,

pois enquanto aqui for

ela não há-de cessar.

Responderam os pilotos

20        todos, em grande cuidado:

—Ó homem, estás louco,

vário ou desesperado?

—Não estou louco ou vário

nem tão-pouco desesperado;

25        tenho ofendido o Senhor,

quero castigar o meu pecado.

A instâncias que fez

ao mar o foram lançar,

mas o Senhor lhe deparou

30        um barco para o salvar.

Esta estranha embarcação

por Deus foi ordenada;

no ventre duma baleia

felizmente navegava.

35        Quarenta horas esteve

no ventre dessa baleia,

sempre posto em oração,

pedindo ao Senhor perdão

de todo o seu coração.

40        Chegou a baleia à Nívia

com vontade de lançar;

abriu a enorme boca,

lançou Jonas no areal.

Ficou muito contente

45        por nascer segunda vez;

pôs-se a louvar o Senhor

p’lo milagre que lhe fez.

Procurou a alguma gente

que cidade era aquela.

50        Disseram-lhe que era Nívia.

Entrou a pregar, dizendo:

—Homens maus e errantes,

tratai de vos emendar;

tendes o Senhor agravado,

55        porque o tendes ofendido.

Se não vos emendardes,

vos dará grande castigo.

Se o Senhor tem algum

castigo para nos dar,

60        reparta-o por monte e vale

e por onde não fizer mal.

Tanto mal nos têm feito

e nos querem fazer;

dai-nos o vosso bem,

65        para que na santa paz

gozemos a glória. Amén19.

O poema é claramente estrófico, constando sobretudo de quadras heptassílabas que sugerem proximidade com a literatura de cordel, a qual é mais moderna20. Por outro lado, também havia alguns romances estróficos, e sabe-se que a história de Jonas tinha «una significación muy especial para los judaizantes del siglo XVII» (Díaz-Mas, 2006: 130). Achavam que, como Jonas, estavam a ser castigados pelos seus pecados, praticamente presos, como ele no ventre da baleia, e esperavam que Deus também lhes perdoasse e os pusesse em liberdade. Temos um bom exemplo desta maneira de pensar no processo de Brites Henriques (Lisboa, 1674), de 40 anos de idade, natural de Azinhoso, concelho de Miranda do Douro21, cujas orações foram copiadas pelos inquisidores, posto que uma equipara a sua situação à de Jonas:

O gran Dios, si tienes dado

contra my mala sentencia,

por tu divina clemencia

me hayas por revogada.

Tirame destes tyranos

y sus malas manos,

asi como tiraste a Joseph

del poder de sus hermanos.

Tanbien nos livre de Santanas

y de sus malas cadenas,

como tiraste a Jonas

del vientre de la ballena22.

Uma comparação rápida demonstra logo que o romance se baseia quase exclusivamente no Antigo Testamento (Jon. 1-3). Embora não contenha elementos midráshicos, é possível que, como o resto dos romances conservados pelos cripto-judeus, também seja bastante antigo. Como vimos no caso de O Sacrifício de Isaac e veremos com A Passagem do Mar Vermelho + A Pedra Mara, os judeus secretos viam-me obrigados a recorrer à Bíblia devido ao esquecimento causado por não poderem praticar o seu culto de forma livre.

Encontrei um total de cinco versões, recolhidas em Belmonte, Lagoaça, e Vilarinho dos Galegos23. A versão acima citada transforma a cidade de Nínive em «Nívia», a qual aparece como «Níbia» em todas as outras, com excepção de uma onde o nome se muda para «magnífica» (Canelo, 1987: 144-145) e Jonas é salvo por um barco. A baleia que o engole e vomita em Nínive, fazendo que fique muito contente por assim «nascer segunda vez», encontra-se em todas as outras versões. No relato bíblico, o protagonista permanece no ventre do animal por três dias; segundo o romance, foram somente quarenta horas. Todas menos uma das versões incluem variantes da oração final24, pedindo ao Senhor que, se tiver algum castigo para dar, o reparta por montes e vales e onde não fizer mal (vv. 58-61), mas duas imploram que o castigo seja repartido

por cousa que não nos doa:

pelos nossos inimigos,

que mal nos desejam e nos querem.

A nós dai-nos saúde, e dai-nos remédio

a todas as nossas cousas25.

Esta oração pode classificar-se como um ensalmo, mas o exemplo mais próximo que consegui encontrar era —e talvez ainda seja— usado para pedir protecção a Santa Bárbara contra as trovoadas26. A referência aos inimigos que tanto mal tinham feito e ainda mais queriam fazer relaciona-se sobretudo com os tempos em que vigorava a Inquisição, quando as denúncias anónimas punham tantas vítimas nas suas garras. Havia inimigos por toda a parte, começando com os próprios vizinhos. Por esse motivo, algumas orações modernas continuam a mencionar a Inquisição, como se ainda existisse:

Deus nos livre da casa da Inquisição,

Deus nos troque o mal feito pelo bem feito.

(Canelo, 1987: 100)

A passagem que segue faz parte duma oração para dizer ao levantar:

O Senhor me dê bons dias na alma e no corpo; salvação para a alma, paz aos vivos e glória aos mortos.

Me livre, o Senhor, dos meus inimigos, de quem mal me quer e mal fala de mim; de Inquisições, injustiças, ferros de El-Rei, de tudo quanto mau for me livre o grande Deus de Israel, por onde for e viver. (Schwarz, 1925: 47)

3. Daniel na Cova dos Leões (estróf.)

Estando Habacuc profeta no campo,

ele mais os seus pastores,

dando graças ao Senhor

que lhe fazia tantos favores:

5          dava-lhe com abundância

trigos, vinhos e gados

para viver com fartura

ele mais os seus criados.

Também estava lamentando

10        as penas que o povo tem,

uns presos em Babilónia,

outros em Jerusalém.

Levantou os olhos ao céu

para pedir ao Senhor:

15        —Queirai-vos lembrar de nós

pelo vosso divino amor.

Lá nessas alturas

viu um grande resplendor;

era um anjo do céu,

20        serafim do Senhor.

O anjo disse: —Manda-te o Senhor

que leves o jantar a Daniel,

que há seis dias que o lançaram

no lago dos leões

25        homens piores que feras,

condenados corações.

—Como hei-de ir contigo, Senhor,

se eu não posso andar depressa?

—Eu te levarei pendente

30        por um cabelo da cabeça,

que não hás-de cair no chão.

Quem levas na tua guarda

é o grande Deus de Abraão.

Chegaram a Babilónia,

35        lá no lago o achou;

enquanto comeu e falou,

o anjo se retirou.

Daniel, admirado, disse:

—Quem vos trouxe aqui, meu pai?

40        —Manda-te o Senhor socorrer

o teu miserável estado.

Habacuc, banhado em lágrimas, disse:

—Dá-me os braços, filho amado;

como estás? —Muito bem, meu pai,

45        melhor do que mereço.

Oh, grande Deus de Adonai,

que há seis dias que aqui estou

de leões acompanhado,

do grande Deus poderoso

50        favorecido e amparado.

Louvado seja o Senhor

que a vida me tem guardado;

seja para o amar e servir

e para lhe fazer obras

55        do seu santo, divino agrado.

Pôs a mesa Daniel

e pelos leões chamou,

para repartir com eles

o que o Senhor lhe mandou.

60        —Come, filho abençoado,

que isso não está bom;

foi feito por pastores.

—Bom é e bom será;

louvado seja o Senhor

65        que tanto nos dá.

Acabaram de jantar,

deram graças ao Senhor.

Nisto ouviu Daniel

uma música cantada;

70        o que a música dizia

Daniel escutava.

Dizia desta maneira:

—Olhai, filhos d’Israel,

que liberdade feliz

75        o Senhor anunciou!

Pôs-se a contar as semanas,

não as pôde contar;

pôs-se a somar os dias,

não os pôde somar:

80        os segredos do Senhor

ninguém os pode penetrar.

Chorai, filhos d’Israel,

chorai o vosso pecado

com todo o vosso coração;

85        quem com o Senhor se pegou,

nunca lhe faltou o perdão.

A esse tempo chegou o anjo,

por Habacuc chamou;

com as lágrimas nos olhos

90        um se foi e o outro ficou.

Bem-dito seja o Senhor

que a vida nos guardou;

seja para o servirmos,

para o louvarmos,

95        e para o nunca olvidarmos.

Amén, Senhor.

(Schwarz, 1925: 55–57)

Este poema também consta sobretudo de versos heptassílabos com estrofes de diferente tamanho, mas com predomínio da quadra. Apesar da falta de assonância, trata-se de um romance27. Embora as quadras sugiram um poema de cordel mais moderno, como no caso de Jonas, recordamos que havia romances estróficos e, neste caso, há razão para pensar que, ao fim e ao cabo, Daniel na Cova dos Leões talvez seja bastante antigo.

Exclusivamente cripto-judaico, o romance foi recolhido em Belmonte, Pinhel, Vilarinho dos Galegos e Vimioso28. A história chegou até aos nossos dias em duas versões bíblicas e uma midráshica. A primeira é o episódio do Antigo Testamento onde o rei Dario manda encerrar Daniel, um dos jovens da Judeia levados para a Babilónia por Nabucodonosor, conquistador de Jerusalém, numa cova de leões, por continuar a rezar ao Deus de Israel apesar de um decreto segundo o qual todas as petições deviam ser dirigidas ao próprio rei por trinta dias. No dia a seguir, Dario encontra-o ainda vivo, e Daniel diz-lhe que um anjo enviado por Deus tinha fechado a boca dos leões (Dan. 6.1-22).

O Livro de Daniel consta de doze capítulos, mas em algumas edições adicionam-se ou publicam-se em apêndice dois capítulos tomados da Septuaginta29. O primeiro narra como Daniel salva da morte Susana, falsamente acusada de adultério por dois velhos que tinham tratado de se deitar com ela (13.1-64). O capítulo seguinte contém mais dois episódios: Daniel e os sacerdotes de Bel (14.1-22), e Daniel e a serpente. No segundo episódio, o rei manda o herói adorar uma serpente que os babilónios veneravam, insistindo que se trata de um deus vivo. Daniel responde que, se lhe dá licença, a matará. Com o consentimento do rei, faz bolos com breu, gordura e pêlos, e atira com eles à boca da serpente, que explode. Furiosos, os babilónios exigem que o rei lhes entregue Daniel, e atiram com ele na cova de sete famintos leões. Ao fim de seis dias, um anjo aparece a Habacuc, que estava na Judeia com uma cesta de comida para os seus ceifeiros. Manda levar a comida a Daniel, e quando Habacuc pergunta como isso é possível o anjo agarra-o pelo cabelo e deposita-o instantâneamente na cova. No sétimo dia, o rei encontra o rapaz sentado, ainda vivo, e reconhece que só há um Deus: «Tu és grande, ó Senhor, Deus de Daniel, e não há outro além de ti!» (Dan. 14.23-42).

A história também se encontra no Midrash, onde deriva obviamente da tradição oral judaica. Em vez de atacar Daniel, os leões lambem-lhe as mãos e abanam o rabo, como se fossem cães. Segue-se a visita de Habacuc, o qual come com Daniel antes de voltar: «They dined together, and then the angel transported Habakkuk back to his place in Palestine» (Ginzberg, 1967-1969, IV: 348).

Ao contrário das duas versões bíblícas e da midráshica, o romance começa com Habacuc, o qual é um profeta do Antigo Testamento (Hab. 1-3)30. Habacuc encontra-se no campo com os seus pastores, dando graças ao Senhor pela abundância, mas queixando-se ao mesmo tempo pelas penas que o povo sofre, tanto em Jerusalém como na Babilónia. Nisto aparece-lhe um anjo. Manda que leve de jantar a Daniel, o qual se encontra há seis dias no «lago» dos leões (vv. 1-25), e transporta-o preso por um cabelo. O profeta e o rapaz comem juntos, e Daniel reparte a comida com os leões (26-65). Quando agradecem a sua refeição, Daniel ouve uma música com uma canção que, além de profetizar a liberdade dos filhos de Israel, diz que devem chorar pelos seus pecados para que o Senhor lhes perdoe (66-86). Então o anjo leva Habacuc para a sua terra, deixando Daniel atrás (87-90), e o romance termina com uma oração de louvor (91-96).

Como indica Díaz-Mas (2006: 131), a utilização da palavra «lago» sugere que o romance se inspira na Vulgata, onde se emprega «lacum leonem»31 para designar a cova. Isto dificilmente poderia ter sido uma questão de coincidência. Como a Vulgata não inclui a versão com Habacuc, o autor podia ter conhecimento quer da versão da Septuaginta, quer da variante oral midráshica. A segunda hipótese parece mais provável. Daniel come sozinho na versão bíblica: «Depois, levantando-se, Daniel comeu. Entretanto, o anjo do Senhor imediatamente reconduziu Habacuc ao seu lugar» (Dan. 14.39)32. No romance e no Midrash os dois comem juntos e, embora os leões não lambam as mãos de Daniel e abanem o rabo como se fossem cães, como no Midrash, Daniel trata-os como tal quando reparte a comida com eles. Embora ausentes do Midrash, as queixas de Habacuc sobre os sofrimentos do povo, tanto em Jerusalém como na Babilónia, logo no princípio, também podiam ter a sua origem numa variante da tradição oral judia.

Essas queixas decerto que tinham um significado especial para os cripto-judeus. Tal como Daniel, encontravam-se exilados, vivendo entre infiéis que lhes proibiam observar a sua fé e os perseguiam, lançando-os em prisões que faziam lembrar a cova dos leões. Dado este contexto, os versos que profetizam a ansiada liberdade futura dos filhos de Israel têm pleno sentido33.

Tudo isto sugere que o romance foi composto «en época bastante temprana, seguramente en los primeros tiempos de existencia de comunidades cripto-judías en Portugal (siglos XVI y XVII)» (Díaz-Mas, 2006: 130). É muito possível que o autor tenha sido um indivíduo que, além de utilizar a Bíblia cristã, também conhecia a tradição oral judaica. Como a Bíblia só estava disponível em latim, língua de cultura naquela época, o autor podia ter sido qualquer pessoa educada. Contudo, não seria de surpreender que se tratasse de um sacerdote. Muitos conversos34, incluindo judaizantes35, buscaram refúgio no seio da Igreja.

4. A Pasagem do Mar Vermelho (á-o)

e

5. A Pedra Mara (á-a)

 

Aos catorze de la luna

do primeiro mês do ano,

2

parte o povo do Egipto

com Israel, seu irmano.

 

Cantigas iam cantando

ao Senhor iam louvando.

4

Louvavam o Senhor

com todo o seu coração.

 

Aonde nos trazes, Moisés?

A este despovoado

6

onde não há pão nem vinho,

nem pastor com ganado?

 

Pede ao alto Senhor que nos leve

a nossas casas.

8

Moisés, com vara alçada,

bateu no mar salgado;

 

abriram-se doze carreiros

para passar o seu povo.

10

Passaram a são e salvo

porque o Senhor o mandou;

 

passaram o Mar Vermelho

para a terra da promissão.

12

O povo, aflito de sede,

ao céu clamava por água.

 

Adiante vai Moisés

com a santa vara alçada;

14

por mandado do Senhor

bateu numa pedra mara

 

[……………………………..]

e lançou água clara.

16

Bendito seja o Senhor,

para sempre engrandecido;

 

de uma pedra lançou água

para aquele povo tão aflito.

18

Moisés, profeta santo

do Senhor amado, querido,

 

imperador da nação,

destruidor do Egipto,

20

pede por misericórdia

àquele Deus infinito

 

que nos dê o seu bem,

nos leve ao seu reino,

22

[…………………………..]

nos livre do cativeiro.

 

Conhecei, irmanos da irmandade,

 

 

o Senhor criou os quatro elementos:

 

24

pó, vento, água, sombra de paredes.

 

 

Assim como nos livrou

 

 

de tão grandes perigos,

 

 

nos livre dos inimigos.

 

26

O Senhor nos defenda

 

 

de trabalhos e perigos.

 

 

Quando formos acometidos,

 

 

nós sejamos vencedores

 

28

e os inimigos vencidos.

 

 

Permita Deus assim seja

 

 

e os anjos digam amén.

 

 

Amén, Senhor. Ao céu vá36.

 

Conheço nove versões deste romance, incluindo a acima citada, a qual foi recolhida em Vilarinho dos Galegos (Mogadouro). Mário Sá e o Abade do Baçal publicaram mais duas daquela aldeia37. Leite de Vasconcelos deu a conhecer uma da Covilhã e outra de Penamacor (Castelo Branco) (1958, IV: 212-213 e 233-234). As outras, todas de Belmonte (Castelo Branco), foram publicadas por Schwarz, Ferré, Maria Antonieta Garcia, e José Pires da Cruz38.

Conhecido como «Oração da Água», este romance é usado durante a Páscoa Judaica, a qual comemora o êxodo do Egipto. Como indica o primeiro verso, celebra-se catorze dias depois do aparecimento da lua que marca o primeiro mês do ano segundo o calendário hebraico. Durante a semana que dura a festa, os cripto-judeus abstêm-se de carne e comem pão ázimo, explicando que, quando os judeus saíram do Egipto, «o pão não teve tempo para fermentar» (Garcia, 1993: 39). Em Belmonte, o romance recitava-se durante o ritual de «cortar as águas», levado a cabo ao pé dum riacho ou dum rio, traçando a água com um ramo de oliveira e dizendo: «Nós partimos as águas como o nosso Santo Moisés as abriu para passar o nosso povo»39.

A versão mais antiga que se conhece encontra-se num manuscrito judaico-espanhol escrito em Veneza em 1702 (Armistead e Silverman, 1962-1963: 66). Hoje em dia, só se conserva entre os sefarditas do Mediterrâneo Oriental e os cripto-judeus portugueses. Embora baseado no Livro do Êxodo, o romance inclui pormenores folclóricos em comum com o Midrash. Tudo isto sugere que foi originalmente composto por judeus, em castelhano, antes da expulsão de 1492.

Tal como os romances anteriores, A Passagem do Mar Vermelho baseia-se no Antigo Testamento (Êx.14). Os versos em que o povo canta e louva o Senhor ao sair do Egipto (3-4) não se encontram nem na Bíblia nem no Midrash, mas a sua conservação entre os sefarditas («Kuando’l puevlo de Israel / de Ayifto salieron kantando, // kon ižos i kon mužeres, / šir širim ivan kantando»)40 garante a sua antiguidade. Na versão portuguesa, o povo começa-se a queixar logo sem motivo que o justifique porque se omitem os versos sefarditas derivados da Bíblia em que Moisés se dá conta de que os egípcios já os perseguem: «Vido venir a Paró / kon un pendón koronado» (Armistead e Silverman, 1979: 131, v. 7). Quando Moisés levanta a vara, «abriram-se doze carreiros / para passar o seu povo» (v. 9). Na versão sefardita, Deus entrega a vara a Moisés, e diz-lhe: «Parte la mar por doğe kaminos / i kita a tu puevlo a salvo» (Armistead e Silverman, 1979: 131, v. 17). Embora ausente da Bíblia, este pormenor é tradicional, visto que se encontra no Midrash: «Twelve paths opened up, one for each of the tribes; the water became as transparent as glass, and each tribe could see the others»41.

A versão portuguesa termina com o verso 11: «passaram o Mar Vermelho / para a terra da promissão». Nas versões sefarditas, afogam-se os egípcios e só sobrevive o Faraó, pendurado pela garganta: «Los ğudiós ivan pasando; / los mitsrim se ivan aogando. // No kedó más ke Paró, de la garganta enkolgado» (Armistead e Silverman, 1979: 131, vv. 18-19).

*

A versão cripto-judaica depois muda a rima de á-o para á-a (vv. 12-15), prosseguindo assim com um romance diferente, A Pedra Mara, o qual conclui com uma oração de louvor em í-o (vv. 16-20) e é-o (vv. 21-22). Trata–se de mais um exemplo das contaminações que ocorrem frequentemente devido à transmissão oral. É graças a esta curta, obviamente condensada contaminação que sabemos da existência deste romance. Baseia-se no episódio bíblico em que, depois de viajar três dias pelo deserto sem água, o povo chega a um lugar chamado Mara, cujas águas eram tão amargas que não as podiam beber. Moisés atira–lhes um lenho que o Senhor lhe tinha dado, e as águas tornam-se doces (Êx. 15.23-25). Ao chegar a Refidim, o povo volta a pedir água. Deus diz a Moisés que fira um rochedo que há em Horeb, e a água começa a brotar (Êx. 17.1-6). Ao referir-se ao rochedo como «pedra mara» (v. 14b), o romance combina dois episódios que estavam sem dúvida separados no romance original num só. Embora a oração de louvor mude de rima, a referência à «pedra que lançou água» (17a) e a prece para que Deus livre o seu povo do seu presente cativeiro tal como o tinha livrado do Egipto enlaçam-na com o romance.

Além da acima examinada, a contaminação de A Pedra Mara com A Passagem do Mar Vermelho só se dá em mais três das nove versões recolhidas. A chamada «pedra mara» repete-se (Alves), mas também se transforma numa «penha magna» (Sá) e numa «pedra mármore» (Garcia). Estas corrupções, como se sabe, também se devem à transmissão oral.

Outro factor importante no esquecimento e contaminação dos dois romances foi sem dúvida o perigo de denúncias. Como não existiam na tradição cristã, era arriscado cantá-los ou recitá-los frequentemente, o que fez com que se fossem condensando até ao ponto de os cripto-judeus se sentirem obrigados a acrescentá-los com orações que não podem ser estudadas no presente trabalho42.

6. No Céu Está Um Castelo (í-a)

Só foram recolhidas duas versões cripto-judaicas deste romance. A primeira é de Vilarinho dos Galegos; a segunda é de Campo de Víboras:

 

No céu está um castelo

lavrado de mil maravilhas;

2

Jacob apanhava a pedra,

Abraão a componia.

 

Entre as árvores e o castelo

doze mil anjos havia,

4

dando graças e louvores,

e o Senhor ainda mais queria.

 

Glórias ao Senhor no céu,

 

paz entre nós na terra

 

para sempre, sem fim.

 

Amén, Senhor. Ao céu vá43.

 

No céu se fez um castelo

todo gerado a maravilhas,

2

Jacob apanhava a pedra,

Abraão a componia.

 

Entre mel e mel

cinco mil anjos do Senhor havia.

4

Demos graças e louvores

aos santos nomes do Senhor que tudo cria44.

Estas versões são tão curtas que até parecem fragmentos dum poema mais extenso. A primeira acaba com uma oração. Na segunda, a referência aos santos nomes do Senhor é frequente em orações cripto-judaicas, algumas das quais especificam que os nomes são 73:

Benditos e louvados,

engrandecidos, realçados,

manifestos, descobertos,

honrados, festejados, exaltados,

sejam os setenta e três

nomes do Senhor Adonai. Amén45.

Ao contrário dos cinco romances anteriores, que se baseiam no Antigo Testamento, No Céu Está um Castelo adapta o romance cristão conhecido como O Pranto da Virgem (í-a)46, o qual se acha amplamente divulgado em Espanha47. A versão portuguesa sobrevive sobretudo como contaminação com Alta Vai a Lua, Alta (Fontes, 1997a, I: 249-250; U1), um romance religioso que era muito popular em Trás-os-Montes devido à sua utilização como cantiga da segada. Só existem duas versões relativamente independentes. Cheguei a suspeitar que a primeira, recolhida no concelho de Arcos de Valdevez, constituía uma re-cristianização da adaptação cripto-judaica (Fontes, 1997a, I: 101; E11), mas equivocava-me:

 

Prò céu bai ũa scada,

formada na marabilha,

2

lá no último degrau,

doze mil’ainjos habia;

 

lá no último de todos,

stab’à Birge Maria

4

co seu menino nos braços,

seu peito n’àlegria,

 

qui o leit’era tão doce,

que o menino adormecia!

6

—Porque tchorais, mnha mae?

Porque tchorais, ò mae minha?

 

—Tchoro pelos pecadores,

que plo mundo habia.

8

Uns me pediam vida,

autros me pediam guelória,

 

queri’-òs cobrir todos,

co meu manto d’àlegria.

(Galhoz, 1987-1988, II: no 479)

Para dar uma melhor ideia do romance português, complemento a segunda versão (Vasconcelos, 1958-1960: no 788) —o autor não indica onde é que foi recolhida— com versos tomados de variantes contaminadas:

 

Lá no Céu há um castilho

pintado à maravilha;

2

não no pintou carpinteiro,

co’a sua carpintaria;

 

pintou-o o rei do Céu

co’a sua sabedoria.

4

Mandou fazer uma torre

das mais altas que havia:

 

S. João apanha a pedra

e S. Pedro a componia,

6

e S. José era o mestre

daquela obra mais fina.

 

A armela era de ouro

e a chave de prata fina.

8

Antre almenda e almenda,

três mil anjos aí estavam.

 

Lá no meio do castilho

está uma rosa florida,

10

e no meio dessa rosa,

está a Virgem Maria,

 

dando o peito a seu filho,

que a chorar se discorria.

12

—Porque chora, minha mãe?

Porque chora, ó mãe minha?

 

—Choro pelos pecadores,

por quantos no mundo havia,

14

e mais por uma mulher,

que de parto se morria;

 

com todo o mal que ela tinha,

o rosário não esquecia.

16

—Cal’te, cal’te, minha mãe,

cal’-te, cal’-te, ó mãe minha.

 

Que lá está meu corpo santo,

que na cruz o pagaria.

18

Os mancos darei sãos

e aos cegos darei vista;

 

os maus ao Inferno

e aos bons glória minha48.

Os cripto-judeus descristianizam o romance retirando os santos cristãos, e colocando Jacob e Abraão, figuras importantes no judaísmo, em seu lugar. Era muito natural que, na intimidade dos seus lares, não se pusessem a louvar e a rezar a santos cristãos. Os Professores Armistead e Silverman documentam abundantemente o mesmo processo no romanceiro sefardita (1982: 127-148).

Por sua vez, o cristianíssimo Pranto da Virgem constitui uma adaptação ao divino do carolíngio Rosaflorida y Montesinos (í-a), onde a bela protagonista se enamora do herói «de oída, que no de vista» (Díaz-Mas, 1994: 241, v. 9). A versão mais antiga foi atribuída a Juan Rodríguez del Padrón (1390-1450), e existem variantes no Cancionero de romances sin año e na Silva de romances de 155149. Embora documentado na Península por apenas três versões catalãs (Armistead e Silverman, 2014: 129-132), o romance encontra-se bem representado entre os sefarditas de Marrocos50. A sua relação com o Pranto da Virgem português torna-se evidente por meio da seguinte comparação:

 

*Lá no céu há um castilho

En Castilla está un castillo,

 

pintado à maravilha;

que se llama Rocafrida;

 

lá mandaram fazer um mosteiro

al castillo llaman Roca,

 

todo de pedra ladrilha.

y a la fonte llaman Frida.

5

O ferrolho era d'ouro,

El pie tenía de oro,

 

a armela de prata fina;

y almenas de plata fina;

 

entre o ferrolho e a armela

entre almena y almena

 

doze mil anjos havia.

está una piedra zafira

 

 

tanto relumbra de noche

 

 

como el sol a mediodía.

 

Lá no meio do castilho

Dentro estaba una doncella

10

está uma rosa florida,

que llaman Rosaflorida.

 

e no meio dessa rosa

(Wolf e Hofmann (1945: no 179).

 

stá a Virgem Maria51.

 

**

A inclusão de elementos midráshicos em O Sacrifício de Isaac e A Passagem do Mar Vermelho, indicam que, apesar do primeiro ser popular em Espanha, tanto um como o outro foram originalmente compostos por judeus. O Sacrifício de Isaac, recordamos, está documentado por meio de um romance jogralesco publicado em 1535. A Passagem do Mar Vermelho, que só sobrevive entre os sefarditas do Mediterrâneo Oriental, foi provavelmente composto pouco antes da diáspora de 1492, e ainda não tinha sido muito divulgado. Caso contrário, teria sido incorporado e conservado pela rica tradição oral da comunidade sefardita de Marrocos. Quanto ao raríssimo A Pedra Mara, o qual só se conserva como contaminação em Portugal, não há dúvida de que foi em tempos muito mais extenso, incluindo de forma clara e separada os episódios de Mara e do rochedo ou pedra de Horeb, que agora vemos condensados em apenas duas palavras.

Devido ao seu carácter estrófico, com predomínio da quadra que caracteriza a literatura de cordel, a antiguidade de Jonas e Daniel na Cova dos Leões é mais duvidosa. Ao contrário de O Sacrifício de Isaac e A Passagem do Mar Vermelho, os quais se complementam com material bíblico e orações, respectivamente, estes dois romances parecem estar relativamente completos.

Por outro lado, repito, sabemos que também havia romances estróficos. No caso de Daniel na Cova dos Leões, a utilização da Vulgata («lago» em vez de «cova») sugere que o romance foi composto quando a Bíblia ainda não estava disponível em português. Embora possa tratar-se duma questão de coincidência, Daniel come com Habacuc, tal como no Midrash e, quando dá de comer aos leões, como se fossem cães, também faz pensar nos leões midráshicos quando abanam as caudas e lambem as mãos do protagonista.

Como vimos, o último romance, No Céu Está um Castelo, descristianiza e adapta O Pranto da Virgem, o qual, por sua vez representa uma recriação ao divino de um romance carolíngio, Rosaflorida e Montesinos. Como acontece o mesmo com várias orações52, este sincretismo deve-se à escassez de material de carácter religioso devido ao isolamento. Além disso, os judeus eram obrigados a seguir a sua fé em segredo, com medo de serem ouvidos pelos vizinhos que os podiam denunciar à temida e pouco cristã Inquisição. Nestas condições, era-lhes extremamente difícil manter viva a sua tradição. Foram-na esquecendo cada vez mais e, como eram obrigados a fingir que eram cristãos, acabaram por ser influenciados pelo meio em que viviam até ao ponto de transformarem figuras importantes do Antigo Testamento em santos quando, como se sabe, não há santos no judaísmo53.

Seja como for, tal como Nossos Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora, o povo de Israel e tantos outros, consideram-se judeus. O preconceito contra eles nunca desapareceu por completo54, e nunca é demais repetir: a sua persistência na sua fé representa um magnífico exemplo da força do espírito humano.

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Fecha de recepción: 16 de junio de 2022
Fecha de aceptación: 14 de septiembre de 2022

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* O autor não segue o Novo Acordo Ortográfico.

1 Houve estimativas contemporâneas muito exageradas, mas este cálculo baseia-se em documentos relativos à capitação que os refugiados tinham que pagar para entrar em Portugal. Graças a esses documentos, Maria José Pimenta Ferro Tavares conclui: «Apesar de todas as nossas lacunas, pensamos que estaremos muito mais próximo da realidade numérica do que os cronistas cristãos e judeus. Lembremo-nos que a nossa hipótese sobre o total dos judeus castelhanos entrados no reino, se aproxima da nossa estimativa para a população judaica portuguesa e que, a comprovarem-se, temos praticamente a sua duplicação, nos últimos anos do reinado joanino» (1982: 256).

2 Herculano (1982, I: 76-77). Não se passou o mesmo com os mouros, os quais, «saíram sem dificuldades, pois temia-se que os Príncipes mouriscos na Ásia e África se vingassem dos cristãos que aí habitavam» (Kayserling, 1971: 116).

3 Fontes hebraicas e árabes foram postuladas para o termo (i.e., Roth, 1995: 3-6) mas, como indica Corominas, a palavra «es indubitablemente aplicación figurada de marrano, “cerdo”, vituperio aplicado, por sarcasmo, a los judíos y moros convertidos, a causa de la repugnancia que mostraban por la carne de ese animal» (1954, III: 272). Quando eu estava na Kent State University (Ohio), um colega do Departamento de Alemão que aderia aos preceitos do judaísmo, contou–me que, uma vez, tinha comido carne de porco sem saber o que era. Tinha-lhe parecido bem gostosa mas, quando lhe disseram do que se tratava, o nojo foi tal que vomitou logo tudo.

4 Vejam-se Azevedo (1989: 346-358) e Saraiva (1985: 202-209).

5 Schwarz (1925: 12). A palavra quer dizer «Senhor» em hebreu.

6 Veja-se a biografia de Mea e Steinhardt (1997). A wikipédia tem um bom resumo sobre a vida do capitão: <https://en.wikipedia.org/wiki/Artur_Carlos_de_Barros_Basto> (última consulta: 10/11/2021).

7 No fim dos anos 80 e princípios de 1990, cerca de 60 indivíduos de Belmonte decidiram aderir publicamente ao judaísmo e fundaram uma sinagoga mas, na mesma localidade, muitos dos seus correligionários preferiram permanecer fiéis à regra do sigilo, continuando a viver como cripto-judeus (Shapiro, 1991); veja-se também Garcia (1993: 120).

8 Schwarz (1925: 17); Basto (1928a-1928b); Paulo (1985: 117). Para estudos mais recentes sobre os cripto-judeus em Portugal, vejam-se Dias (1999), Canelo (1996) e Fontinha (2022).

9 Schwarz (1925: 17); Basto (1928a-1928b); Paulo (1985: 117). Isto sugere que os cripto-judeus não ousavam pôr as suas orações por escrito antes da década de 1740, quando a Inquisição se viu obrigada a suspender as suas actividades (vejam-se Azevedo, 1989: 346-358; Saraiva 1985: 202-209).

10 Fontes (1990-1993); Fontes (1991); Fontes (1992); Fontes (1997b); Fontes (1999); Schwarz (1925: 47-91); Machado (1952: 534-658); Vasconcelos (1958: 162-235); Paulo (1985: 59-109); Canelo (1987: 95-164); Garcia (1993: 181-204). Entre 1928 e 1947 também se publicaram muitas orações cripto-judaicas em Ha-Lapid (1927–1958), uma revista judaica editada por Artur Carlos de Barros Basto. O recente e magnífico estudo de Sandra Cristina dos Santos Fontinha sobre estas orações é imprescindível (Fontinha, 2022).

11 Para orações extraídas de processos inquisitoriais, vejam-se Azevedo (1989: 484-486); Schwarz (1925: 95-107; do mesmo processo que Azevedo, mas com mais orações transcritas); Freitas (1952, 1954); Coelho (1987, I: 199, 201-202, 204, 210-211, 216, 223-224); Mea (1985); Tavares (1987: 96). Num livro verdadeiramente esplêndido, o Professor David Gitlitz, falecido em 2020, também reúne muitas orações portuguesas e espanholas tomadas de várias fontes (Gitlitz, 1996: 443-499).

12 Armistead cataloga os 25 que havia no Archivo Menéndez Pidal (1978, I: 198-225); Barugel (1990: 7) aumenta este número para 31.

13 Para bibliografia, vejam-se Armistead (1978, I: 203) (E5); Barugel (1990: ix–x). No que se refere ao romanceiro em geral, a tradição portuguesa partilha muitos temas mais com a sefardita, incluindo vários romances que só se conservam nessas duas tradições (Díaz-Mas, 2004: 241-253). Esta investigadora também analisa os romances sefarditas dedicados à história de Portugal (Díaz-Mas, 2004: 254-258), incluindo um sobre a derrota de D. Sebastião em Alcácer-Quibir (1578).

14 Para uma versão de Rebordelo e outra de Belmonte, com uma lista das suas respectivas reimpressões, vejam-se Ferré (2000-2004, I: nos 247-248). Como o seu título indica, a recompilação desta obra termina em 1960. Depois dessa data, Cruz (1995: no 8) e Galhoz (1987-1988, I: no 46) publicaram mais duas variantes de Belmonte. Para bibliografia relativa a versões castelhanas, sefarditas, à tradição antiga e correspondências pan-europeias, veja-se Fontes (1997a, I: 91) (E2). Como se indicou na nota anterior, Armistead (1978, I.: 203) (E5), também inclui bibliografia. A versão de Carção publicada pelo Pe Francisco Manuel A1ves, Abade do Baçal, abre com uma oração intitulada «Ao Todo Poderoso», a qual depois continua:

 

Perdoa-me, alto Senhor,

como Abrão a seu filho amado.

2

Tinha um cochilo na mão,

o braço levantado.

 

Mandou Deus do Céu

um anjo mui cortesano.

4

—Tate, tate, Abrão,

não faças mal ao muchacho.

 

Já Deus está contente,

satisfeito e pago.

6

Vai trás daquela starse,

lá está um cordeiro atado.

 

Mandou Deus do Céu

um aviso que fosse sacrificado.

(Alves, 1986: 701)

Regularizo a ortografia e a pontuação. Cochilo e muchacho são castelhanismos para «faca» e «rapaz». Não sei o que significa «starse» (zarza, silva?).

15 Schwarz (1925: 57-58); regularizo a ortografia, a pontuação, e coloco em itálico as palavras castelhanas em todos os romances citados.

16 E é possível que o Abade tivesse decidido eliminá-la.

17 Moisés Abraão Gaspar, meio irmão de Francisco dos Santos Gaspar, a quem minha mulher e eu gravámos três orações em Rebordelo (Vinhais) em 1980 (veja-se Fontes, 1990-1993: 76-77), mostrou a Amílcar Paulo um manuscrito de 99 páginas intitulado Livro de Orações ao Altíssimo Deus Todo-Poderoso, que tinha herdado do pai. Casado com uma Cristã-Velha, Moisés tinha deixado de seguir a Lei Antiga, e disse a Paulo que falasse com o seu irmão Francisco (Paulo, 1985: 117).

18 Para um estudo pormenorizado deste romance, veja-se Fontes (1994).

19 Machado (1952: 33). Classificado como romance em Fontes (1997a, I: 92-93) (E4).

20 Como indica Ferré (1987: 171), tanto este romance como o de Daniel na Cova dos Leões, «apresentam uma linguagem muito mais próxima do romanceiro vulgar».

21 Veja-se Henriques (1674) < https://inquisicao.info/view/2302024>; última consulta: 5/12/2021.

22 Schwarz (1925: 99-100). Segundo Schwarz (1925: 95), a combinação de português e espanhol é influência provável da ocupação castelhana, mas também é possível que Brites fosse descendente de refugiados espanhóis, e que estes continuassem a rezar na sua língua. Os pais de Brites morreram nas masmorras inquisitoriais, e o seu irmão mais velho foi queimado vivo em 1683. Brites foi condenada à reclusão perpétua num mosteiro (Schwarz, 1925: 95).

23 Belmonte: Canelo (1987: 144-145); Garcia (1993: 98-99; 200-201), que parece uma reimpressão de Canelo (1987), pois as duas versões são praticamente iguais. Lagoaça: Paulo (1956: 635-636), com as seguintes reimpressões: Paulo (1959: 806-807); Paulo (1969: 19-20); Paulo (1971: 118-120); Paulo (1985: 87-89). Vilarinho dos Galegos: Basto (1934: 4-5), que é apresentada como sendo de «Vilarinho do Mogadouro»; Machado (1952: 33), reimpressa em Paulo (1969: 11-12).

24 Na versão de Canelo (1987: 201), a pessoa que recita pede que o Senhor não mande castigos e, devido ao esquecimento, conclui com uma contaminação —a mesma oração bíblica (Gén. 22.17) que encontramos no fim de O Sacrifício de Isaac:

O Senhor manda-nos grandes castigos.

O Senhor me livre deles,

como Pai de infinito amor e misericórdia.

Piedade santa, que vive e governa

o céu de estrelas,

o mar de areias,

árvores de folhas

e sementes por todo o mundo.

25 Garcia (1993: 99). Cf. Paulo (1956: 636).

26 Pede-se a Santa Bárbara (por vezes o santo é outro) que as leve para onde não façam mal. Custódio et al. (2008) reúnem um grande número de versões (nos 337-373: 246-263). Eis uma:

—Bárbara, para onde vais?

—Senhor, eu ao céu vou.

Vou espalhar a trovoada

que no céu está armada.

—Pois vai, Bárbara.

Bota-a no monte Maninho,

onde não haja pão nem vinho,

nem bafo de menino,

nem raminho de oliveira,

nem pedrinha de sal,

nem coisa que faça mal.

(Custódio et al., 2008: 247 [no 340])

27 Fontes (1997a, I: 93-96) (E5) e Díaz-Mas (2006) classificam-no como tal.

28 Belmonte: Ferré (1987: n.o 92); Schwarz (1925: 55-57) com reimpressão em Canelo (1987: 149-151). Pinhel: Rodrigues (1932: 3-4). Vilarinho dos Galegos: Machado (1952: 32), com reimpressão em Paulo (1969: 8-9); Sá (1925: 235). Vimioso: Paulo (1956: 558-560), com reimpressão em Paulo (1969: 15-18).

29 Veja-se Santa Biblia (1983: 1055-1058). A Septuaginta designa traduções antigas para o grego que contêm material ausente do Antigo Testamento em hebreu: Encyclopedia judaica (1974, XIV: 1178); Metzger e Coogan (1993: 686-687).

30 Encyclopedia Judaica (1974, VII: 1014-1017); Metzger e Coogan (1993: 265-266).

31 Biblia sacra iuxta Vulgatam versionem (1994: 1357) (Dan. 6.12).

32 Como não tenho à mão uma edição da Bíblia com a Septuaginta em português, copiei esta citação na internet, em: <https://liturgiadashoras.online/biblia/biblia-jerusalem/danielis/14-2/> (última consulta:: 6/12/2021).

33 Fontinha (2022: 125-133) coloca ênfase especial neste aspecto do poema.

34 Veja-se, por exemplo, Gómez-Menor (1995).

35 Vejam-se Sicroff (1965) e (1966).

36 Machado (1952: 39-40) (nº 56). Reorganizo os versos, originalmente apresentados em heptassílabos, a fim de apresentá-los com rima assonante em dois hemistíquios; também modernizo a ortografia e a pontuação. Castelhanismos: la luna (a lua), ganado (gado), irmanos (de hermanos, irmãos).

37 Sá (1925: 235); Alves (1986: 709-710).

38 Schwarz (1925: 72-73); Ferré (1987: 117) (no 91); Garcia (1993: 80); Cruz (1995: 56) (no 9). Ferré (2000-2004, I: 419-424; nos 249, 250 e 251) documentam as reimpressões de várias versões deste romance. Para paralelos sefarditas, veja-se Fontes (1997a, I: 99) (E8).

39 A transformação de figuras do Antigo Testamento como Moisés, a rainha Ester e Tobias em santos deve-se à influência do meio cristão; o judaísmo não admite santos (Paulo, 1971: 80-81; Schwarz, 1925: 28). Para um resumo dos modos como o romance é usado em várias comunidades, veja-se Fontes (2007: 245).

40 Armistead e Silverman (1979: 131, vv. 1-2). Por falta de espaço, as citações que seguem restringem-se a esta versão sefardita. Foi cantada por Leo Azase, um imigrante de Marmara (Turquia) radicado em Seattle (estado de Washington, EUA), no dia 30 de Agosto de 1958.

41 Ginzberg (1967-1969, III: 22); veja-se também Hamos (2005: 206).

42 Estudam-se em Fontes (2007: 253-258). Fontinha também dedica um estudo aos dois romances que acabamos de examinar (2022: 135-139).

43 Machado (1952: 28). Reorganizo os versos assonantes originalmente publicados como heptassílabos e normalizo a ortografia. A palavra componía (compunha) é espanhola.

44 Canelo (1987: 143). Reorganizo os versos.

45 Basto (1928b: 8) (no 43). Outras versões: Machado (1952: 29) (no 29); Paulo (1971: 90); Schwarz (1925: 75). Também encontramos uma referência aos 73 nomes do Senhor inserida numa versão de A Passagem do Mar Vermelho: «Louvaremos os setenta e três nomes do Senhor / que é a honra e louvor do nosso cabo» (Ferré, 1987: 117, vv. 6-7). Na opinião de Schwarz (1925, p. 27), o número em questão deriva de um livro escrito pelo rabino toledano Abraham-ben-Ibn-Ezra a princípios do século XII: «Analizando, no seu livro cabalístico Sefer Hashem (Livro do Nome de Deus), a significação mística do tetragrama divino (Iehovah), com que os hebreus designam Deus, e compondo e somando os números correspondentes a cada uma das letras componentes, conforme os métodos cabalísticos, determinou o algarismo 72, ao que atribui uma especial significação cabalística, dizendo que representa o número de letras de que é composto o Nome de Deus». Os cripto-judeus teriam adicionado mais um número.

46 Fontes (1997a) não cataloga este romance.

47 Armistead (2014: 137-138) apresenta exemplos das Astúrias, Canárias e Galiza. Para uma abundante bibliografia, vejam-se as pp. 208-209.

48 Os números entre parênteses referem-se ao Romanceiro Português de Leite de Vasconcelos (1958-1960), e indicam as versões utilizadas: vv. 1-3 (n.o 788); 4-6 (778); 7 (776); 8-15 (788); 16-17 (766); 18-19 (788). Os castelhanismos castillo, componía e almendas (corrupção de almenas) significam castelo, compunha e ameias. Outra variante contaminada, recolhida em Argozelo, inclui os seguintes versos:

14

Mandaram fazer uma torre

mais alta que a maravilha.

 

S. Pedro apanhava a pedra,

S. João a comparia;

16

S. José era o carpinteiro

da nobre carpintaria.

 

Entre o ferrolho e a armela

doze mil anjos havia.

(Fontes, 1987: n.o 969)

49 Reimpressas em Armistead e Silverman (2014: 117-119).

50 Para bibliografia sobre o assunto, veja-se Armistead e Silverman (2014: 208).

51 Os números entre parênteses referem-se ao Romanceiro Português de Leite de Vasconcelos: vv. 1-2 (no 788); 3-4 (769); 5–8 (771); 9-12 (788).

52 Veja-se Fontes (1997b). Este material merece um estudo separado.

53 «Uma religião praticada com tanto perigo e em tão rigoroso segredo, sem sacerdotes nem livros, transmitida apenas por via oral, foi naturalmente empobrecendo de fórmulas e ritos, sofrendo alteração nos seus preceitos e até, aqui e além, se contaminou da influência do catolicismo, que os Cristãos-Novos eram obrigados a professar publicamente» (Vasconcelos, 1958: 168).

54 Em Argozelo, a igreja estava dividida por uma corda, a fim de separar os Cristãos-Velhos dos Cristãos-Novos. Isto deu origem ao insulto «judeu da corda», o qual é considerado uma grande ofensa (Paulo, 1985: 28). Em 1980, disseram-nos que crianças de idade escolar dos dois grupos costumavam atirar pedras umas às outras. Em Rebordelo, Francisco Santos Gaspar informou que, há algum tempo atrás, os cripto-judeus tinham que morar no bairro do Guerreiro. Como só sabia quatro orações cripto-judaicas que tinha aprendido com o pai, dirigiu-nos a Deolinda Mota, de 90 anos de idade. Consentiu ser entrevistada pela Maria-João, gravando sete orações em grande segredo. Não queria que os vizinhos soubessem que seguia «a Lei Antiga» (Fontes, 1990-1993: 77-78).